terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Como pensar na autoridade para quem não a conheceu ou como os vizinhos estranhos incomodam

* trabalho apresentado no II Encontro da Semiliberdade em Outubro de 2010


Com este título provocativo, gostaria de me aproximar de algumas questões que tocam a realidade do sistema socioeducativo. Sugeri que existem alguns que não conhecem a autoridade: como pensar isto? De que forma uma afirmação desta pode fazer sentido, como conceber alguém que desconhece a autoridade? Que tipo de conseqüências pode-se depreender desta ignorância?
Vivemos em sociedade e o grupo social se pauta exatamente pelo conhecimento e o assentimento de leis e regras que regulam o convívio desses grupamentos. Há uma espécie de contrato social implícito que rege nossos costumes e que nos tira da selvageria que seria a guerra de todos contra todos, como pensou Hobbes. Tal sorte de acordo nos retira da violência que estaria presente em uma natureza indomada de brutos, e nos alça a categoria de sujeitos de direitos e deveres, sujeitos civilizados, cidadãos; é como que se na cadeia da evolução a horda cedesse lugar à cidade. A boa convivência, não apenas dos pequenos grupos e comunidades é regulada por códigos de condutas e ditames normativos que permitem uma convivência pacífica entre aqueles que estão submetidos a estas regras e normas. Isso pode ser pensado em nível micro, quando se refere à própria família, os pequenos grupos, as comunidades, e se expande em nível macro de modo a servir de base para as relações de paz e boa convivência entre países, nações, continentes.
Indo um pouco mais adiante, podemos indicar que o lugar primeiro onde se estabeleceriam as bases das normas de convivência seria pertinente ao núcleo familiar. Sem necessariamente fazer um longo raciocínio psicanalítico, parece ser razoável sustentar que é no núcleo familiar que se toma conhecimento dos regulamentos que norteiam quanto ao que pode ser correto ou errado, bem como aquilo que deve e o que não deve ser feito. A família, habitualmente considerada a célula da sociedade, é o núcleo do qual se origina não apenas o indivíduo, corpo biológico, bem como ela serve também como cerne social do sujeito. A família, inserida em uma determinada cultura, num lugar maior donde ela é uma pequena parte, serve dialeticamente ao sujeito como o berço de sua própria cultura; pode-se dizer que a família serviria de primeiro molde para um sujeito.
Tendo sido feita esta observação, podemos voltar à origem da nossa questão, quando focamos nas medidas socioeducativas e a ausência ou presença da autoridade outrora mencionada: que tipo de visada pode-se encontrar? Qual é a população alvo das medidas socioeducativas? Tais medidas atingem aos adolescentes menores de dezoito anos que cometem ato infracional, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Outra pergunta surge de pronto: quem são estes jovens? O que ocorre em alguns centros urbanos que produz situações parecidas senão necessariamente de uma guerra de todos contra todos, pelo menos uma espécie de guerra de alguns contra alguns, ou de uns poucos contra muitos?  De acordo com os noticiários do dia a dia, a violência em algumas cidades ou bolsões dentro da cidade produz números pertinentes a uma guerra civil. O que nos mostrarão os fatos? Onde a concentração da violência ocorre? Quais são as principais vítimas? A resposta rápida que um cidadão comum poderia dar provavelmente apontaria para si mesmo como a maior vítima da violência, mas sentir-se vítima aqui parece não ser uma prerrogativa concernente apenas ao homem ordinário. Esse mesmo cidadão pode responder, ainda, que o grande problema são as drogas, o uso de drogas ilícitas e o tráfico que alimenta com armas e truculência os becos da periferia e os jovens que nisto se envolvem em busca de poder, prestígio, domínio territorial e de mercado. De acordo com este raciocínio, um número nada desprezível de crianças e adolescentes das periferias serviria apenas para nos mostrar toda a gula que eles tem por dinheiro, produtos de ultima geração e reconhecimento entre os seus. Quando assim se pensa, são os valores e o modo de vida que levam estes meninos, que os conduzem ao  gargalo onde a violência impera. É curioso que a opinião publica não costuma se importar muito com o que ocorre dentro das favelas e em seus becos; ela, na verdade, se ocupa disso principalmente quando a violência não permanece contida em seu bolsão e vaza pelo asfalto que circula a classe média. É principalmente neste momento que ouvem-se os brados da sociedade civil que solicita ações veementes do Estado.
Agucemos um pouco mais nossos sentidos e tentemos nos aproximar da violência e dos adolescentes autores de atos infracionais com outros olhos. Quem são estes garotos? Qual é a história de vida destes sujeitos que os conduz a um destino tão pernicioso? Sabe-se solicitar intervenções efetivas do estado em relação aos adolescentes autores de ato infracional, mas pergunta-se muito pouco sobre o que de fato os levou a cometer tais atos. Voltar a um ‘statu quo ante’ talvez nos permita tentar uma apreciação mais fidedigna dos fatos.
Para começarmos o raciocínio importante perceber o impacto que ocorreu nos arranjos familiares contemporâneos que atualmente são muito diferentes daquele modelo clássico que compreendia o varão como provedor e a mulher incumbida da administração domestica. Hoje existem diversas configurações possíveis, que compreendem um remanejamento de papéis e de lugares, o que produz núcleos familiares muito diferentes do antigo formato tradicional. Esta reengenharia da família é um fenômeno que se observa em todas as classes sociais.
No que diz respeito às crianças e adolescentes das periferias, é comum a existência de um ambiente familiar frágil, com a ausência recorrente da figura paterna, isto não se aplica a todos, mas um número razoável destes jovens não porta sequer o patronímico em sua certidão de nascimento. No caso de muitos adolescentes, seu universo tem uma configuração matriarcal, sendo a mulher a principal, quando não a única, provedora. Essas provedoras, para garantir a sua sobrevivência e de sua prole, regularmente se ausentam para cumprir sua jornada de trabalho. Assim, os cuidados das crianças são encaminhados para terceiros quando eles existem (avós, parentes ou vizinhos); quando não, as crianças mais novas são deixadas sob a tutela de outras crianças um pouco mais velhas e, fortuitamente, podem também ser deixadas à própria sorte. Esse ponto por si só, faculta ilustrar algo que é de natureza micro (pertinente a um núcleo familiar), mas também algo maior que pode ser detectado na ausência de redes de assistência sociais (portanto relativos à uma política pública específica de estado).
A maioria absoluta dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas é oriunda de classes mais baixas e grande parte habita em comunidades da periferia e favelas. Como localizar tais espaços na cidade? Quais são suas características recorrentes? Provavelmente um dos aspectos relevantes a se destacar seja como toda a arquitetura das favelas e comunidades da periferia tem habitualmente uma topografia e arranjo espacial que produzem várias dificuldades de acesso. Mas talvez se possa pensar ainda que tal dificuldade não se restringiu apenas aos lugares propriamente ditos; tal característica pode ter contribuído para uma espécie de abstinência do Estado, os barrancos íngremes produziram uma espécie de barreira, que a mão invisível do estado não recobre. Estas situações rotineiras de abandono, como podemos chamá-las, multiplicam-se não apenas com a ausência de creches sociais disponíveis, quanto também no que diz respeito à prestação mesmo de serviços públicos, exemplificada pela ausência de saneamento básico, energia elétrica (problema que é resolvido por intermédio de extravio da energia proveniente dos postes nas ruas, o que o saber comum chama de “gato”), ausência de transporte urbano com cobertura efetiva, ausência de escolas, postos de saúde e rede de assistência social. Expõe-se, assim, exatamente aqueles efeitos que nos mostram como a ausência do Estado e de suas políticas públicas pode ser maléfica. Abstinências “pontuais” acabam por produzir efeitos que se espraiam por toda estrutura social.
Avançando um pouco mais, qual seria a relação entre a ausência do estado e as situações de delinqüência juvenil? Bem, começamos identificando a fragilidade de núcleos familiares e a ineficácia de uma rede de serviços sociais que possam garantir cuidados necessários mínimos a um número muito grande de crianças e adolescentes. Em seguida, toda a questão da infra-estrutura urbana se reflete nos hábitos do dia a dia. As favelas surgiram por meio da invasão de áreas que pareciam desinteressantes ao mercado imobiliário. Sendo assim, uma de suas principais características é a ausência de planejamento espacial tanto arquitetônico quanto urbano; desse modo, os barracões das favelas mormente tem espaços exíguos, sem privacidade e mal distribuídos, e um dos efeitos que essa constrição produz é empurrar seus moradores para a rua. E a pergunta subseqüente é: - o que se encontra nestas ruas? Becos espremidos, esgoto a céu aberto, ausência de asfalto, emaranhados de fios nos postes, ausência de segurança, poeira e pó de abandono, literalmente o que se pode chamar de efeitos de invisibilidade social. uma parte da população que ali habita encontra lugar no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal. Contudo, uma parcela considerável da população mais jovem, não. Sem perspectivas, muitas vezes o que encontram é apenas o tráfico de drogas de braços abertos. No que tange à insuficiência das redes sociais de atendimento, acabam surgindo várias consequências muito previsíveis. Esse abandono social mostra quanto a ação ineficiente do Estado recrudesce e alimenta uma espécie de classe à parte, uma classe marginal, descoberta de ações e políticas públicas, descoberta tanto de uma entidade que deveria oferecer cuidado quanto de uma autoridade reguladora. Tal situação ilustra como o Estado, esta ‘persona ficta’, que deveria funcionar como reguladora de relações sociais, simplesmente não funciona.
Outro ponto pode ser considerado neste momento e ele parece nevrálgico. O mote de uma campanha pública de conscientização acerca da importância da escolarização para crianças e adolescentes apregoa: “lugar de criança é na escola”, malgrado do destino, tal máxima parece manter-se longe da realidade de muitas crianças e adolescentes das periferias. Muitos jovens das comunidades e favelas apresentam um baixo índice de aproveitamento e rendimento escolar, que se reflete em um alto índice de evasão escolar. Mal alfabetizados eles se tornam mercadoria sem valor para o mercado de trabalho formal, e muitas vezes replicam a realidade de seus pais, também com baixo índice de escolarização, baixo índice de capacitação, baixo índice de habilidades para o mercado, baixo salário.
Todos estes problemas, entendamo-los como estruturais, produzem esta espécie de invisibilidade social, e acreditamos poder considerar que tal invisibilidade traz em seu rebote o efeito da violência. Essa espécie de desserviço público mostra a outra face da lei que não conhece a si mesma. Desse modo afastamo-nos da idéia da autoridade pública reguladora e tal abstinência do Estado mostra a face obscura de uma lei que representa sua própria anomia. Mas, curiosamente e ao mesmo tempo paradoxalmente, onde não se instaura esta cobertura da mão invisível de direitos e deveres institucionalmente acordada, outra lei surge. Se existe o desconhecimento das ações de Estado, ou da autoridade estatal uma vez que ela se oferece apenas de forma parcial ou mesmo insuficiente, brota em seu lugar uma outra autoridade que se impõe de forma imperativa. Pode-se dizer que, de certa forma, faltou a cobertura de algumas clausulas do contrato social e surgiu, no lugar desta ausência, uma autoridade impositiva e que legisla apenas em interesse próprio. Onde uma lei para todos claudica surge a lei autoritária e arbitrária, violenta e coercitiva do mercado das drogas. É aqui que a lei do tráfico mostra toda sua pujança.
Emerge na estrutura social da periferia a figura do traficante, uma espécie de empresário às avessas de um produto avesso. Este anti-herói acaba produzindo efeitos muito contundentes nas cercanias de seu comércio, impactando de maneira muito efetiva a rotina de sua vizinhança. O tráfico de drogas produz lideranças com forte capacidade de captação de recursos financeiros e que habitualmente se utilizam de recursos truculentos para demarcar, defender e estabelecer sua área de atuação. É importante perceber como tal presença dentro de uma comunidade, produz situações que vão de um extremo a outro, pois o tráfico de drogas tanto pode funcionar de forma assistencialista quanto despótica. Tal funcionamento compreende, até mesmo, a imposição de leis próprias que funcionam nestas áreas de atuação, como se recolhe na fala de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa: “Se você entrar cem metros pra dentro da favela é um outro mundo, é uma outra lei”. Os ordenamentos da liderança do tráfico de drogas nas comunidades tem efeitos de lei, compreendem tanto o aspecto regulador quanto judicativo, os líderes do tráfico sentem-se no direito de legislar, julgar e punir os desviantes e seus inimigos, infringindo até mesmo, em seu julgamento, a possibilidade da aplicação da pena de morte. Dentro das favelas e periferias em que existe o tráfico de drogas, existe outra lei que não a lei do Estado, e tal lei funciona a partir do entendimento que os líderes do tráfico têm sobre o que e quem interfere em seu comércio e que tipo de sanção ele deve sofrer. Pode-se dizer que estes truculentos empreendedores agem a partir de pressupostos de uma lei de mercado, mas contudo, trata-se de um mercado eminentemente desregulado, dado a ilicitude do produto que o move. A ilegalidade tanto do produto quanto do comércio acaba permitindo que o gestor do ilícito imponha normas tão cruéis quanto caprichosas.
Não trataremos aqui de uma discussão acerca da proibição das drogas, mas apenas de um de seus efeitos. Uma parcela nada pequena dos adolescentes em cumprimento de medida de semiliberdade adentrou na medida exatamente por seu envolvimento com o tráfico. E podemos, então, perguntar-nos por que, afinal, o tráfico de drogas parece ser tão envolvente? Para pensar um pouco mais nisso podemos pinçar a fala de outro adolescente, que diz o seguinte:  “O tráfico era um sonho de criança, pois assim podia ter tudo àquilo que sua mãe não dava. No tráfico não havia limite, no tráfico a coisa é séria”. Se apenas no tráfico a coisa é séria, de que ausência de seriedade ele nos fala? Da ausência da seriedade da autoridade? Os adolescentes entram no tráfico porque ali alguma coisa funciona. Que paradoxo é este? O que o tráfico consegue fazer funcionar e que o Estado não consegue? Que benefícios o tráfico de drogas traz para os adolescentes que o Estado de direito não consegue oferecer?
Através destes inquietantes questionamentos nos aproximamos da questão da autoridade que, de algum modo, norteiam estas linhas. Aludimos ao fato que muitas crianças e adolescentes das periferias e favelas encontraram-se particularmente expostos a situações de privação tanto de recursos quanto de cuidados, e, sendo muitos oriundos de núcleos familiares difíceis, esfacelados ou simplesmente inexistentes, provavelmente pouco conheceram a noção de autoridade. Seja a questão da autoridade, de seu reconhecimento, pensada em nível pessoal, individualizado, no corpo a corpo, com alguém literalmente encaminhando ordenamentos, seja ela pensada enquanto entidade ampliada na figura do Estado, persona ficta de direito, garantidora e fiscalizadora de direitos, parece ser razoável pensar que muitas crianças e adolescentes tiveram pouca oportunidade de a conhecer. A lei que conhecem é a lei violenta, despótica e brutal que o tráfico de drogas imputa de cima para baixo. É importante ressaltar que mesmo sendo tão cruel em seus procedimentos, o tráfico de drogas costuma recompensar de maneira generosa seus militantes, e onde encontrávamos um enorme contingente de jovens à deriva, incapacitados, despreparados, semialfabetizados e inadequados para o mercado de trabalho formal, o tráfico encontra seus soldados ideais. Tratando-se de um negócio ilícito, existem muitos riscos nesta empresa, mas não há como negar que a mobilização dos recursos que o tráfico produz mete inveja em muitos setores da economia formal. Assim, o enorme contingente de invisíveis ganha visibilidade, não apenas isto, passam a possuir, consumir, ostentar toda a sorte de bens de consumo que os alça a uma nova categoria. Assim municiados, passam a ser não apenas vistos, como também respeitados e temidos. Parece razoável supor que o tráfico de drogas oferece a crianças e adolescentes oriundos dos bolsões de exclusão a possibilidade deles alçarem lugares que o mercado formal jamais ofereceria. O tráfico os fascina pelo poder que engendra, o tráfico os leva a lugares que pelas vias formais, talvez jamais conseguissem chegar.
Diante do desconhecimento da lei para todos, este contingente apela, então, para a lei que conheceram tão bem, a lei de cima para baixo, a lei violenta que tomou o lugar aonde havia ausência de lei, ausência de autoridade, a lei do líder que chegou aonde chegou pela força da imposição. Como não havia autoridade que regulasse, experimenta-se a ditadura da violência. A violência de algum modo era algo que eles já conheciam de diversas formas e há muito tempo. Continuaremos sustentando a hipótese  de que a ausência do Estado acabou por produzir uma situação de invisibilidade, ela própria também uma espécie de violência.
Não são poucos nem pequenos os desafios que encontramos quando recebemos estes adolescentes para cumprimento de medida socioeducativa. Como exposto anteriormente, vários chegam até a medida em virtude do envolvimento com o tráfico e de, algum modo, eles reproduzem ou tentam reproduzir a “visão de mundo” que encontraram em sua rotina dentro das unidades de cumprimento de medida. As casas de cumprimento de semiliberdade costumam ser motivos de queixa da vizinhança, o vizinhos toleram mal os adolescentes, ficam receosos com o trânsito deles, incomodados com o barulho que provocam, desconfiam de sua forma típica de trajar e da linguagem que usam. Mas talvez esses vizinhos estranhos incomodem mais porque eles nos mostram toda a alteridade que existe no mundo, eles nos mostram como existe uma diferença brutal entre o que se observa no asfalto e o que ocorre nos becos. Mesmo que a distância entre os prédios de luxo e os barracões possa ser pequena do ponto de vista geográfico, ela se agiganta do ponto de vista social, cultural e econômico. Supondo que houvesse de fato uma igualdade entre os homens (e ela deveria ocorrer), encontramos no nosso público a negativa desta afirmação. Eles (os adolescentes e crianças autores de ato infracional) mostram-nos como existem vários pontos de fragilidade na tessitura social, mostram-nos ainda como a sociedade é desigual, bruta, cruel, omissa, e de algum modo ignorante. Porque se não é isto que nos mostram, como pensar uma sociedade que atira parte de seu contingente humano no limbo? Como pensar em uma sociedade que não se ocupa ou se preocupa com aqueles que, de alguma forma, representam o futuro? E não apenas isto: que espécie de futuro tal omissão produz? Talvez mais do que se assustar com os hábitos tão estranhos de nossos vizinhos que não conhecem bem a autoridade, devêssemos estranhar os motivos que produzem uma cegueira tão persistente.




Anderson N. Matos
Psicólogo, especialista em psicologia da saúde pela PUCMINAS, mestre em psicologia pela FAFICH/UFMG.
Diretor Geral de unidade de cumprimento de semiliberdade – unidade Semi-Letícia (por ocasião da construção deste trabalho)
Diretor do Núcleo de Estudos sobre Álcool e Drogas (NEAD) – Instituto Ajudar

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Modernidade e sintoma: Toxicomania, aquilo que não se decifra

Modernidade e sintoma: Toxicomania, aquilo que não se decifra
Anderson N. Matos[1]
 (texto apresentado no VIII Fórum Mineiro de Psicanálise)





A psicanálise de orientação lacaniana localiza nas manifestações dos “novos sintomas”, entre outros, a figura do toxicômano. É uma manifestação que é absolutamente sincrônica a sua época, como buscaremos demonstrar adiante.
Para que possamos circunscrever este campo surgem algumas perguntas necessárias, a saber: em que circunstâncias surge a toxicomania? Existe uma especificidade na relação do sujeito moderno no uso que se faz hoje das substâncias estupefacientes?
A toxicomania é um conceito relativamente novo que aparece no contexto da Revolução Industrial. Não é um conceito proveniente da clínica, mas antes, da idéia de saúde pública do fim do século XIX. (RUBIO, 1999)
Para situar as condições que a precederam e determinaram é importante detectar os efeitos produzidos pela ciência na produção e criação de novos produtos. O desenvolvimento da farmacologia na primeira metade do século XIX é um exemplo elucidativo, que se presta de modo particular à ilustração dos efeitos da imissão destes avanços na cultura e nos hábitos dos homens. Com o progresso da Química, que permitiu a extração de alcalóides da papoula e da coca, vem à cena uma proliferação de produtos cada vez mais poderosos, como por exemplo a morfina (1804), a cocaína (1860) e a heroína (1874). Surgem também instrumentos revolucionários para a Medicina, que visam uma otimização de suas aplicações e recursos, é o caso, por exemplo, da seringa hipodérmica (1840), que permite a administração de drogas diretamente na corrente sangüínea. Parece necessário perceber que é de uma maneira absolutamente natural, que esses novos produtos originários do mundo médico são introduzidos na vida social.
O desenvolvimento tecnológico leva a criação de uma enormidade de produtos e sua oferta conduz ao surgimento de demandas nos mercados de consumo. Um grande mercado de drogas, naquele momento ainda insuficientemente conhecido do ponto de vista clínico e evidentemente promissor do ponto de vista econômico, se oferecia ao mundo. A introdução, na Europa, dos excedentes do comercio inglês de ópio ou os esforços de grandes indústrias farmacêuticas, como a Bayer, por exemplo, para comercializar a heroína – “irmã da aspirina” – podem ilustrar este quadro. É por este viés que as descobertas da ciência embaladas pelo discurso capitalista produzem uma enorme expansão de vários produtos estupefacientes. É somente no fim do século XIX que o uso destes produtos começa a ser considerado como um flagelo por uma parte da população (RUBIO, 1999). A Medicina por seu turno passa a se interessar pelas novas síndromes produzidas pela intoxicação e estabelecer os quadros clínicos do alcoolismo, do morfinismo, do cocainismo etc. Naquele momento, já começam a se evidenciar os problemas da intoxicação sobre o corpo e se iniciam os estudos de seus efeitos.
O discurso da ciência busca decodificar os elementos da natureza, busca suturar o real. Dar um bom nome às coisas é seu objetivo. Mas seu progresso transcende o quadro de uma boa denominação e efetivamente cria novos produtos que simplesmente não existiam. Nesse contexto, a droga pode ser pensada como mais um entre tantos outros elementos que a ciência descobriu ou potencializou.
É importante verificar como a incidência desses efeitos da ciência no cotidiano modula a questão da oferta de objetos e a relação dos sujeitos com os mesmos. Entre essa proliferação interminável de produtos que surgem, encontraremos vários que se caracterizam pelo aspecto efêmero de suas finalidades ou utilizações. Contudo, estes objetos surgem vinculados a um forte apelo de consumo oriundo do discurso capitalista, que apregoa a via do consumo como a via ‘princeps de satisfação. Expostos nas prateleiras, vitrines e telas digitais, esses objetos serão chamados gadgets e permitem a utopia do acesso a todos de modo igualitário, quase regulador, na produção de uma espécie de gozo uniformizado. Surgem como necessários e capazes de realizar o impossível. Essas próteses que anulam a relação do homem com a falta e servem na mesma medida como tentativa de tamponar a divisão subjetiva. Estes novos objetos que a ciência liga aos homens passam a existir para que o sujeito possa deles gozar.
Contudo, junto aos arroubos tecnológicos da ciência, com toda a sorte de utilitarismo possível que se encontre nos produtos que ela oferece, surgem formas de utilização que não haviam sido previstas. O programa da ciência não consegue inibir ou calcular o que vem a mais, o que retorna como indecifrável das coordenadas do real, impossíveis de quantificar. O simbólico não recobre todo o real. Alguma coisa retorna, efeitos de um real sem significação. Algo escapa, e podemos aí colher a própria noção de sintoma, que revela um retorno da verdade como falha no saber, conforme pensa Lacan. (LACAN, 1998)
A máxima de Lacan (LACAN, 1998, p 623) ‘com a oferta criei a demanda’, encontra nos produtos e no discurso do capitalismo uma encarnação fiel. A droga na modernidade surge paradoxalmente como um desses objetos que foi, senão necessariamente criado, ao menos virtualmente otimizado por avanços tecnológicos. A droga, hoje, funciona numa espécie de utilitarismo às avessas e mostra a outra face de um objeto mais de gozar criado pela ciência. Como todos os novos objetos inseridos no mundo, vêm embalada pelo discurso capitalista, podendo servir como um novo modo de gozo na sociedade. O uso da droga, contudo, parece vir na contramão dos modos de gozo socialmente sancionados. Na toxicomania, tal uso ocorre como um fenômeno em que encontramos presente o excesso, pertinente ao discurso capitalista mas na forma de uma desmedida que desdenha a normatização imposta pelo laço social.
Miller assinala, com uma observação importante acerca dos paradigmas do gozo, que pode nos auxiliar para pensar sobre a questão do excesso que aqui apontamos:

Acrescento que a oposição do prazer e do gozo é essencial. O princípio do prazer aparece, de algum modo, como uma barreira natural ao gozo e, portanto, a oposição se estabelece entre a homeostase do prazer e os excessos constitutivos do gozo. Trata-se, ao mesmo tempo, da oposição entre o que é da ordem do bem – do lado do prazer – e aquilo que o gozo sempre comporta de mal. (MILLER, 2000, p 92)

O uso que se faz da droga na atualidade poderia ser pensado nessa vertente, como um tratamento, no qual o sujeito se utiliza do Pharmakon. Porém, na toxicomania, assistiremos algo que retorna de modo paradoxal, como um remédio sem boa medida – “um remédio que se torna veneno”. (SANTIAGO, 2001, p 159)
É como um efeito do discurso da ciência, que a Psicanálise de orientação lacaniana vai localizar a toxicomania, tipificando-a inicialmente entre as “novas formas de sintoma”. Nestas encontraremos explicitadas as manifestações que revelam a decadência das referências ligadas ao ideal, os efeitos da vacilação dos semblantes e todo o rechaço do saber tão característico da nossa época. Os trabalhos do GRETA (Groupe du Recherche et Études sur la Toxicomanie et Alcoolisme), no final dos anos de 1980, anunciavam as “novas formas de sintoma”, que tomam corpo no século XXI como “novos sintomas e novas angústias”, enquadramento que revela o empuxo contemporâneo ao gozo. (TARRAB, 2007)
A toxicomania como “método químico de intoxicação, é a prova cabal do efeito do discurso da ciência nos interstícios do saber, que cria um novo produto tanto no mercado de bens, como no mercado de gozo”. (LEMOS, 2004, p 52) A droga, pensada como um dos muitos produtos engendrados pela ciência, é um novo gadget. Assim, em conformidade com o raciocínio freudiano de 1929, a droga continua a funcionar como uma forma de resposta ao sofrimento.
Nos tempos modernos, é o discurso capitalista que organiza um gozo possível para os sujeitos, através de uma injunção ao consumo. É o imperativo da obtenção de objetos, que funciona como maneira de tratar a falta. Por esse viés, a droga encontra assim um lugar específico:

Na esfera das relações interpessoais como na da troca econômica, o ideal consumista se prevalece da crença num objeto de direito sempre disponível, com a condição de poder comprá-lo, num gozo sem interdito. Se observará simplesmente o que no horizonte poderia figurar melhor esse objeto sempre accessível, desse gozo garantido por fatura; é o objeto do toxicômano, as drogas de todas as espécies que nossa época multiplica e diversifica. (CHEMAMA, 1997, p 36)

A toxicomania surge como substituto das formas usuais de manifestação dos sintomas. Sabemos que os sintomas habituais das neuroses, conforme propõe Freud, portam uma dimensão de ciframento e são passíveis de interpretação. Pressupõe uma divisão subjetiva, a ação do recalque e do subseqüente retorno do recalcado. Como diz Miller: “Alguma coisa se cifra e se decifra, sem dúvida, nas formações do inconsciente. Isto é evidente em Freud. Mas também, para Freud, alguma coisa se satisfaz no que se cifra e se decifra”. (MILLER, 2000, p 88)
Maurício Tarrab adverte-nos quanto às características destes “novos sintomas”:
A toxicomania, a bulimia, a anorexia, os ataques do pânico e tudo o mais que colocarmos neste saco estão muito próximos do que Lacan chamava a operação selvagem do sintoma, e vão na contramão da vertente simbólica do sintoma como mensagem. É o sintoma que não pede nada, que é a fixação de gozo. (TARRAB, 2007)
A toxicomania, entre os “novos sintomas”, não se enquadra na vertente clássica do sintoma como metáfora. Sua manifestação aponta, antes, para uma espécie de atuação, na qual o mal-estar não aparece cifrado, mas explicitado como gozo sem medida, desregulado. “O que podemos verificar nessas novas formas de gozar é que as atuações prevalecem sobre o simbólico.” (BENTES, 2006)
Na contemporaneidade, não é apenas a clínica do sintoma passível de interpretação que interpela o analista, como bem salienta Figueiró:

Portadora da pulsão de morte, a clínica do consumo é a clínica do aniquilamento do sujeito em sua repetição, em sua solução ao mal-estar contemporâneo. É por isso que fazemos de seu campo os sintomas da nossa atualidade, que, ao banalizar os ideais e ignorar as particularidades, globaliza-se em seu apetite de consumo frenético, na oferta em escala crescente dos objetos para a satisfação e até mesmo nas extrapolações de um bem-estar. Sem dúvida alguma, a subjetividade de nossa época se encontra de tal modo afetada pelas exigências do mercado, nutrido, ele próprio, pela fabricação ininterrupta de objetos ofertados pela ciência, que ela acaba por ter perdidas as suas referências; ela acaba, enfim, por ser consumida em seu próprio consumo. (FIGUEIRÓ, 2003, p 11)

O toxicômano, nesse contexto, é este sujeito que traz um paradoxo interessante: ele é um consumidor-consumido. Talvez possa se levantar a hipótese de que ele é um efeito colateral da confluência de alguns aspectos relativos à evolução da ciência e o empuxo ao consumo. Esse enlace produziu o que a Psicanálise localiza como o declínio da função paterna, com o subseqüente esgarçamento dos ideais e dos significantes mestres. Na ausência de um Nome-do-Pai regulador, assistimos o ordenamento do mestre capitalista que só manda gozar. A nova ordem é gozar, alguma coisa fora da ordem manda gozar, tal qual o supereu insensato, que é ao mesmo tempo a lei e seu desconhecimento, como Lacan localizou tão bem (LACAN, 1986). Uma lei desregulada vocifera contra os sujeitos através de injunções, e parece saber dizer apenas uma palavra: - goza!




BIBLIOGRAFIA

BENTES, Lenita. De que padece o sujeito. In www.cetta.psc.br/main-noticias2.cfm? Acesso em 21.11.2006 22:15 hs
CHEMAMA, Rolland. “Um sujeito para o objeto”. In GOLDENBERG (Org.). Goza!: capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador: Agalma, 1997. p. 36.
FIGUEIRÓ, Ana. Maria. Costa. Lino. Seminários. Agenda EBP. Minas Gerais: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, agosto, 2003. p. 11.
LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar ed. 1998. p 591-649.
LACAN, Jacques. Do sujeito enfim em questão. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1998, p. 234
LACAN, Jacques. Os escritos técnicos de Freud. O seminário – Livro 1 (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1986. p 123.
LEMOS, Inês. A toxicomania e o discurso da ciência. Mental: Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC – V. 2, Nº 3, Novembro 2004. Barbacena, MG: UNIPAC. p. 52.
MILLER, Jacques-Allain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana.  Nº 26-27, abril, 2000. São Paulo. Ed. Eólia p. 87-105.
RUBIO, Guillermo. Le toxicomane: un homme de parole – Forum Psychanalytique de Bruxelles – Foruns du champ lacanien, jounée du ll juillet, 1999. Versions du symptôme. In: www.champlacanien.france.net Acesso em 11.07.06, 09:20 hs
SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano; uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
TARRAB, Maurício. Produzir novos sintomas. In www.nucleosephora.com/asephallus/numero_02/artigo-05port_edicao 02.htm. Acesso em 10 de fevereiro de 2007.


[1] Diretor do Núcleo de Estudos sobre Álcool e Drogas do Instituto Ajudar, Belo Horizonte, Minas Gerais


segunda-feira, 11 de abril de 2011

Observações sobre o hospital psiquiátrico no contexto da reforma brasileira









Este trabalho faz algumas observações sobre a reforma psiquiátrica brasileira que prevê a desconstrução da instituição manicomial e a criação de serviços substitutivos que substituam esta modalidade de atendimento. O manicômio, que parece na atualidade tão anacrônico, talvez ainda cumpra algumas funções em decorrência da inexistência de cobertura adequada para a saúde mental que cubra satisfatoriamente nosso amplo território.


Existe hoje no panorama da cultura ocidental um movimento amplo que repensa as práticas relativas à saúde mental e o papel historicamente atribuído ao hospital psiquiátrico. Projetos visando reformas institucionais e ideológicas entraram em curso a partir de interrogações que foram surgindo ao longo do tempo, acerca da eficácia e eficiência do tratamento asilar. Houve um momento não muito distante, em que o manicômio e os campos de concentração encontravam uma estranha e indesejável semelhança. Foi devido a tal sorte de impressões que vários países passaram a questionar acerca da pertinência do próprio lugar do hospital psiquiátrico, e a partir de então assistimos a projetos sanitários de reforma no tratamento da saúde mental.
No caso brasileiro tal reforma foi inspirada naquela que ocorreu na Itália com a implantação das propostas de Franco Basaglia, que concebia o hospício mais como uma instituição arcaica e reprodutora de exclusão, do que um lugar afeito a um tratamento digno para a loucura. A reforma tupiniquim, tal qual seu modelo, propõe por um lado a desconstrução da instituição manicomial, e por outro, a criação de todo um aparato de equipamentos e ferramentas que vão substituí-la. A idéia que subjaz à reforma é a de que deve-se contornar as manifestações da loucura extra-muros, fora do hospital. Entende-se que é melhor para o paciente ser tratado in locco, em um serviço comunitário com a manutenção do sujeito em seu próprio espaço social. Busca-se assim evitar entre outros, por exemplo, os efeitos iatrogênicos que os tratamentos institucionais comportam, busca-se manter o enfermo em contato com a sua comunidade, preservando ao máximo possível o enlaçamento social do sujeito.
Por outro lado, sabemos como o hospital psiquiátrico é por definição o lugar para onde é dirigida a loucura, quando as manifestações de um sujeito não conseguem circunscrever-se de forma adequada no espaço social. Pode-se dizer que a loucura é habitualmente caracterizada por alguma espécie de crise que não pode ser contornada ou mediada no espaço de convivência comum. Este tipo de impressão sobre a loucura nos remete historicamente a própria genealogia do manicômio e permanece ainda hoje passível de ser comprovada, apesar da referida reforma em curso.
É curioso que em meio a esta reengenharia que desloca o eixo paradigmático da questão, na medida em que deixa de privilegiar a doença mental e o tratamento institucionalizado da moléstia, e passa para um viés preventivo que tem como foco a saúde mental e um tratamento extra-muros, ainda tenhamos que considerar sobre a presença do hospital psiquiátrico entre nós. O manicômio nesta acepção impregnada que o termo comporta, configura-se no imaginário contemporâneo uma herança indesejada que merece apenas sua própria desconstrução, e falar dele parece-nos trazer de volta um cadáver insepulto que jazia no armário, parece um deja-vú de uma questão que parecia já ter sido superada.
Um buchicho, porém, ganha a mídia quando surgem questões relativas à pertinência da lei 10.216 (a lei da reforma psiquiátrica brasileira). Manifestações pró e contra surgem com defensores de grande envergadura advogando posições heterogêneas. Ninguém menos que o poeta Ferreira Gullar brada contra o que lhe parece ser um descalabro de lei, ele se ressente e questiona sobre a redução de acesso aos leitos psiquiátricos na rede pública após a implantação da reforma brasileira. Do outro lado psiquiatras militantes e politicamente engajados sentem-se compelidos a falar, ‘Impossível se calar’ é o nome de apenas uma das respostas que foram dirigidas ao poeta.
De todo modo, a verdade é que o hospital psiquiátrico por uma grande sorte de motivos permanece ainda hoje como um lugar comum na vida de muitos pacientes portadores de sofrimento mental. A loucura quando volta ao hospital é exatamente aquela que encontra intolerância no espaço social, é no imaginário coletivo, um destempero refratário ao ordenamento social.
Uma rica fenomenologia clínica pode produzir o reencaminhamento da loucura ao manicômio. Ela caracteriza-se entre outras, pelas formas de desvario que manifestam riso e choro, revelando na mesma face tanto a alegria que não conhece o limite, quanto a dor sem ponto de parada. Surge ainda na forma do desatino, da ausência de crítica, da ausência de pudor, a vergonha também se ausenta, surge a nudez, o desejo sem critérios aflora sem interdição. Não mais lugar para a razão, não mais atenção à lógica, o pensamento repleto de automatismos mentais, mostra-se invadido, publicado, roubado. Juízos falsos criam um mundo próprio que delirante se constrói, a linguagem prolifera em mil novas línguas, o afeto transborda sem sintonia, a memória falseia e trai. Podem ocorrer ainda vozes imperativas que ordenam ao enfermo que produza determinadas ações, que eventualmente (um ainda forte argumento jurídico-legal para interdição ou mesmo internação) podem representar risco para si mesmo ou para terceiros.
Em função de manifestações desta natureza ‘indomada’, e seus elementos geradores de conflito na ordem pública, demandas são feitas ao saber psi e sujeitos são encaminhados para os serviços de saúde mental. Lembremo-nos que ao hospital psiquiátrico e ao saber psi, (irmãos siameses forjados em uma só lavra) foi conferido o papel de normatização nos desvios das condutas sociais.
Dever-se ia pensar que os serviços substitutivos conseguissem sanar estas demandas e resolver os impasses que as crises provocam, rezando desta forma conforme a cartilha que a reforma propõe. Esta não é contudo, a verdade unívoca. Ocorre que muitas vezes, uma grande sorte de atravessamentos conduz novamente os sujeitos aos hospitais, tais ocorrências tão plurais, encontram diversas causalidades. Elas tanto são pertinentes ao que é particular quanto ao que é coletivo, podem ocorrer devido à magnitude das crises, quiçá em função da baixa aderência de alguns pacientes ao tratamento. Pode ser o primeiro surto e o paciente não encontrar-se ainda referenciado em um serviço de saúde mental, pode se tratar da enésima crise e de algum modo o serviço de referência do paciente não consegue servir efetivamente como tal, ou simplesmente pode ocorrer também a ausência de serviços substitutivos que consigam de maneira eficiente responder à demanda. Na verdade é muito heterogêneo o quadro da assistência que os municípios podem oferecer aos seus cidadãos e servindo-se de um jargão muito utilizado pelas operadoras de telefonia móvel no Brasil, talvez estejamos autorizados a pensar que existem áreas de sombra, sem a devida cobertura para a assistência a saúde mental em muitos lugares do nosso país.
Ainda em relação ao hospital psiquiátrico, um preceito ético que a reforma prega é de que a internação obedeça estritamente ao tempo em que se fizer realmente necessária. Contornada a urgência, verificada a melhora no caso, tendo ocorrido novo arranjo social (fato que muitas vezes prolonga a permanência de alguns pacientes), tendo sido de algum modo atendida à demanda que conduziu aquele paciente à internação, providenciar-se-á a alta. Novamente a questão da referência ao serviço de origem do enfermo deve considerada no momento de sua saída, buscando-se uma aplicação efetiva da noção de rede que permite construção, sustentação e manutenção dos lugares do sujeito em sua particularidade, no espaço social.
Parece muito razoável pensar que a loucura merece um lugar entre nós, talvez erros históricos nos façam perceber que temos uma espécie de dívida para com a loucura, como se tem em relação a tantos outros excluídos, párias culturais e sociais de várias épocas de nossa história.
Não é a toa que a loucura já mereceu elogios, Erasmo de Rotterdam, diz sobre a predileção que os reis tinham pelos loucos. Diferentemente dos sábios que tinham duas línguas, uma para dizer a verdade e outra para falar conforme as circunstâncias, aos loucos podia-se tributar sempre a franqueza e a verdade. Talvez exatamente porque o leque de emoções abre-se em um sem fim de variedades, a loucura tenha merecido o elogio do escritor e o entendimento por muitos, de que ali, habitaria algo da verdade do homem.
A loucura em seu volume exacerbado mostra o que habita nos interstícios dos homens comuns. Freud é partidário da idéia que a patologia mostra de modo expandido os mesmos afetos que encontramos abrandados nos homens normais. É assim, por exemplo, que nos mostra que na queixa dos paranóicos de serem vigiados, reside de forma ampliada, aquilo que nos homens normais funcionaria como a voz da consciência.
E porque temos uma consciência que nos vigia conforme notou Freud, e deixando-se levar por ela, provavelmente teremos a percepção que é necessário tratar melhor a loucura.
Parece muito razoável levar em conta o elogio de Erasmo que revela sobre a presença de alguma forma de verdade na loucura, bem como das notações freudianas, que nos advertem sobre o fato de que a qualidade dos afetos é muito semelhante, que loucura e normalidade talvez se diferenciem mais em virtude de suas quantidades do que propriamente de suas qualidades. Considerações como estas resgatam a humanidade que tantas vezes subjaz esmagada pela loucura, fazem-nos lembrar que por traz de toda a nosologia e a fenomenologia clínica existe um sujeito, e que ele deve ser considerado em sua particularidade. Vale lembrar que para além dos nossos saberes, classificações e enquadramentos possíveis, existem sujeitos nas cidades em uma inalienável posição de cidadãos.
Assim devemos louvar a reforma psiquiátrica que assistimos e suas diretrizes sociais que preservam o sujeito e o seu enlaçamento. Devemos perceber definitivamente que é correto pensar que o hospital (no caso da psiquiatria) não pode ser jamais o primeiro recurso, e sim o último, para alguém que precise dele. É muito pertinente sustentar que a saúde e sua promoção como política pública devem ser feitas em nível básico. A reforma está absolutamente correta na medida em que percebe ser mais importante focar na manutenção da saúde mental do que ter que tratar os desalentos produzidos pela doença mental. Mas, para que tal situação assim se proceda, muito há que acontecer ainda. A rede substitutiva ainda precisa ser ampliada. Os municípios devem ter efetivamente um posicionamento ético e político que considere sobre os direitos do cidadão. A loucura que tradicionalmente foi pensada como passível de interdição não deve sufocar os sujeitos que foram por ela seqüestrados, é importante notar que um dos princípios mais importantes desta reforma é o resgate da cidadania que ela proporciona. Não se pode esquecer que o portador de sofrimento mental é um cidadão e como tal, deve ter garantido seu direito à saúde. Mas falta muito para que o hospital psiquiátrico vire peça de museu, na verdade seu papel é ainda crucial, ainda não estamos preparados para sua completa desconstrução. Será somente quando o gestor público fizer aplicar literalmente o ordenamento jurídico que regulamenta sobre a atenção à Saúde Mental em todos os municípios do nosso país é que o panorama da reforma e o destino do hospital psiquiátrico irão realmente tornar-se outros.
Enquanto isto ainda não acontece por completo, podemos ir ocupando-nos com outro tipo de problemas que precisam ser enfrentados e barreiras que precisam ser desconstruídas, barreiras tão sólidas ou mais que os muros institucionais. As verdades que residem na loucura são sem dúvida, estranhas verdades, mas nem por isto menores, Erasmo nos guia quanto a isto. Em um mundo no qual as fronteiras se expandem tanto, parece ter chegado definitivamente o momento da desconstrução necessária de algumas grandes barreiras, existe ainda um grande muro que habita muitos que conseguem ver na loucura não mais que um sujeito sem razão. A fenomenologia a se observar nestes casos seria a cegueira proveniente da intolerância e do preconceito, e neste mundo tão ampliado isto não deveria ocorrer mais, parece um efeito anacrônico impregnado de impressões arcaicas.





segunda-feira, 21 de março de 2011

UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DAS DROGAS E DE SUA PROIBIÇÃO, OU COMO O CRIME SEM VÍTIMA SE TORNOU UMA QUESTÃO DE ESTADO













            NO PRINCÍPIO...

Os gregos antigos usavam a palavra phármakon que tinha conotações que denotavam ao mesmo tempo droga curativa, remédio, mas também veneno. Na Odisséia de Homero surge uma passagem na qual os efeitos do phármakon são descritos. Em um banquete, o rei Menelau ao invocar a memória de Ulisses faz com que seus convidados mergulhem em profunda melancolia, e nesse momento: ‘à filha de Zeus, Helena, ocorreu uma idéia. Subitamente, jogou uma droga (phármakon) na cratera em que se servia bebida: essa droga, apaziguando a dor, a cólera, dissolvia todos os males; uma dose da bebida impedia, durante o dia todo, a quem dela bebesse, de derramar uma lágrima, ainda que tivesse perdido o pai e a mãe, ainda que, com seus próprios olhos, tivesse visto morrer, sob a espada, um irmão ou um filho amado!... Remédio engenhoso, presente obtido, por Polidamna do Egito: a gleba nessa país produz, juntamente com o trigo, mil ervas diversas, umas venenos, outras remédios.’ (Santiago, 2001).
            Remonta dessa maneira o conhecimento da droga e seu uso a tempos longínquos, mesmo antes da escrita de Homero podemos recolher fragmentos do uso da droga e do álcool pelo homem desde tempos primevos.
            Existe a hipótese de que o álcool teria sido descoberto através de sucos fermentados e de vegetais ricos em amido e açúcar. Consta que:
            “... por acaso, ou mesmo de propósito, algumas frutas possivelmente uvas, foram deixadas por algum tempo em um vasilhame primitivo ou em algum buraco de uma rocha. O sol e a ação de criaturas invisíveis, que agora sabemos chamavam-se fermentos, estragaram as frutas. Elas se transformaram em uma massa pastosa. Mas um homem sedento e faminto ingeriu a massa. Nós podemos apenas imaginar o impacto desse acidente fermentativo. Não apenas a sua fome e sua sede foram saciadas, mas ele se sentiu inexplicavelmente bem. Menos cansado, mais corajoso... Estava descoberto o álcool’ (Mark Keller apud MANSUR, 1998, Pacheco).
            Outros produtos hoje considerados tóxicos ilícitos também foram usufruídos por diversas culturas em um grande leque de aplicações. Pairam dúvidas sobre qual teria sido a primeira droga psicoativa utilizada pelo homem, o que se pode saber com certeza foi que isto ocorreu a milhares de anos.
            As propriedades da papoula de onde se extrai o ópio são conhecidas há pelo menos 8.000 anos no Mediterrâneo ocidental. Seu uso medicinal foi muito difundido sendo utilizada no Oriente Médio como sedativo para dor e como afrodisíaco. Os faraós no Egito o usavam como ingrediente na fabricação de remédios, e imperadores romanos se serviam da droga para dormir. Com a evolução dos tempos e as investigações da ciência, a droga foi adquirindo cada vez formas mais refinadas como por exemplo, a morfina, isolada em 1804, e desde então utilizada como eficiente anestésico. Em 1874 foi descoberta a heroína, ainda mais potente que a morfina, revelando-se uma droga com alto poder de dependência. (Vergara, 2003)
A maconha é originária da Ásia Central, entre o Mar Cáspio e o Himalaia na região que compreendia a ex-União Soviética. São encontradas três espécies: Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis. A palavra ‘sativa’ vem do latim cultivada. Suas sementes com alto valor nutritivo serviam para alimentação de homens e animais e do seu caule produzia-se uma fibra de excelente qualidade, que servia para fabricar tecidos e papel. O princípio ativo encontrado na cannabis é o THC (tetrahidrocanabinol), que tem um importante efeito farmacológico e psicoativo tendo tido um papel relevante nas origens da medicina e da religião de muitos povos. O registro mais antigo encontrado da maconha são marcas de cordas impressas em cacos de um vaso de barro encontrado num sítio arqueológico de Yan-Shan, atual Taiwan. É um vaso de 12.000 anos, e acredita-se que as marcas são feitas por cordas de cânhamo. Na primeira farmacopéia conhecida do mundo, do imperador Shen-Nung escrita provavelmente em 2.737 a.C. a maconha era recomendada para dores menstruais, reumatismo, prisão de ventre e malária. (Burgierman, 2002)
A planta foi usada por milênios por vários povos do oriente ao ocidente, além do efeito psicoativo conhecido, valorizava-se sobretudo suas aplicações na fabricação têxtil, e de papeis, bem como os óleos derivados das sementes. A chegada da maconha na América Latina se deu provavelmente junto com a de seus colonizadores. A Coroa espanhola e portuguesa ordenaram o plantio do cânhamo já no século XVI, para garantir o suprimento de tecidos – fundamental para que os navios pudessem reparar suas velas antes da viagem de volta à Europa. Os escravos provenientes da África para o Brasil, sobretudo das colônias angolanas, já conheciam a planta e a palavra ‘maconha’, vem do dialeto quimbundo, do idioma banto de Angola. (Burgierman, 2002)
Em 1789, Napoleão invadiu o Egito com suas tropas, um dos motivos que o levaram a tal investida foi provavelmente a intenção de destruir as plantações de cânhamo que abasteciam de tecido a poderosa inimiga, a Marinha Inglesa. Parte de Napoleão a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os egípcios fumavam o haxixe e simplesmente ignoraram a lei. (Burgierman, 2002)
O episódio da cocaína também não é menos interessante. Conheciam-se os relatos sobre o uso da folha da coca pelos índios sul-americanos, sobretudo das regiões andinas do Peru, Bolívia, Colômbia. Mascar folha de coca é um habito antigo e muito difundido nessas culturas milenares, e é muito anterior à chegada dos colonizadores. Todas essas culturas se utilizavam da folha da coca em função de sua ação farmacológica capaz de inibir os efeitos causados pelas elevadas altitudes. A folha de coca bem como a cocaína diminuem a fadiga, o cansaço, o sono e a fome.
A droga foi sintetizada em 1860 por Albert Niemann e teve entre os cientistas da época que pesquisaram sobre seus efeitos, o futuro pai da psicanálise Sigmund Freud. A droga foi responsável por um embaraçoso acontecimento na vida de Freud e seu amigo Ernest Von Fleisch-Marxow, pode-se imaginar os efeitos deste inbroglio através da ausência total dos textos de Freud sobre a cocaína em suas obras completas.


SOB AS BARBAS DA LEI



A partir de 1.900, grande parte das drogas conhecidas por nós hoje se encontravam disponíveis nas farmácias e drogarias sendo possível comprá-las até mesmo pelos correios diretamente de seus fabricantes. Existem obviamente casos de dependência de ópio, morfina, heroína, mas o fenômeno ainda não chamava a atenção geral ocorrendo apenas alguns artigos em periódicos e revistas que alertavam para o risco. Os juízes e policiais não tinha sido até aquele momento convocados para tratar a questão, que não era ainda assunto jurídico, político ou de ética social (Escohotado, APUD Pacheco, 1996 ).
Fenômenos sociais porém vão imprimir um novo olhar sobre a questão do uso de álcool e drogas na sociedade, vamos localizar no seio daquela pátria que diz ser guardiã da liberdade, a semente do que veio a ser tornar uma política de proibição e restrição de uso e comercialização das drogas num nível planetário. Os Estados Unidos da América, a pátria dos homens livres, teve um protagonismo importante no que se transformou uma política mundial de combate às drogas.
A origem destas políticas proibicionistas remonta à conferência de Xangai (1909) e a de Haia (1911), nas quais no terreno diplomático, os Estados Unidos, inicialmente constrange e depois obriga aos signatários das conferências, a coibir em seus territórios o uso de opiáceos e cocaína que não atendessem recomendações médicas (Rodrigues 2002). Logo depois há um exemplo paradigmático de uma lei que fracassou dentro do próprio solo americano, a Lei Seca. Não foi contudo seu fracasso que fez arrefecer o ímpeto normativista, travestido de bastião da moral, que escondia em sua base uma motivação racial.
A América no começo do século XX vicejava como uma nação em franca expansão. Sem mão de obra escrava desde 1865, para seu solo migrava toda sorte de populações que não encontravam em sua pátria condições de manutenção e subsistência, ou simplesmente por que buscavam naquele lugar novas oportunidades. Contingentes expressivos se dirigiam para a terra prometida; asiáticos (chineses), europeus (italianos, irlandeses), latinos (mexicanos), judeus de todas as partes e ainda a população afro-descendente que havia sido levada para a América como escrava e que lá permaneceu.
Os grupos sociais portam mesmo que no exílio inúmeros elementos de sua cultura, sua língua, sua alimentação, religião, hábitos e costumes, pode-se dizer um sujeito foi expatriado de sua terra, mas não dos elementos que compuseram sua formação. O hábito de usar algum produto estupefaciente pode ser pensado como um elemento pertinente a aspectos culturais de alguns grupos. As incontáveis utilizações possíveis que as drogas encontravam estavam inseridas nos hábitos e costumes de destes grupos servindo a finalidades múltiplas - ascese religiosa, uso farmacoterâpicos, como veículo para se alcançar estados alterados de consciência, para obter efeitos de sedação ou tratamento, etc.
A sociedade estadunidense se insurge diante dos abusos decorrentes do uso de alguns destes produtos. Os excessos tornam-se mal vistos e neste contexto surge um movimento de inspiração puritana que se chama ‘Movimento de Temperança’, que tinha como princípio a condenação da embriaguez. O excesso no uso do álcool era criticado por ser contra princípios morais, médicos, econômicos e nacionalistas. (Pacheco, 1998).
O movimento que inicialmente era contra o uso abusivo acaba por se tornar francamente contrário ao uso do álcool de maneira geral. Por pressão de grupos populares que se orientavam por rígidos princípios morais, o Congresso Americano fez uma Emenda a Constituição e institui a Lei Seca. “O puritanismo organizado norte-americano, conseguira então, levar seus homens às instâncias representativas, ao termo em que as práticas governamentais do estado aceleravam a marcha das medidas de controle social com base no rastreamento dos hábitos e disciplinarização das condutas” (Rodrigues, 2002).
A lei vigorou de 1920 a 1933 e se mostrou o que podemos chamar de ‘tiro pela culatra’. Ela proibia em todo território nacional o uso, a fabricação e venda de bebidas alcoólicas. A lei que pretendia “que os barris fossem coisa do passado, que as cadeias e casas de correção ficassem para sempre vazias, que todos os homens voltassem a caminhar erguidos, e sorridentes, ficariam todas as mulheres e crianças”. (Escohotado, APUD Pacheco, 1998)
O engano logo se revelou. Tendo o álcool passado para categoria de substância ilícita, surgiu rapidamente uma rede clandestina que o fazia circular. Agora sob a pena da lei, com seu uso, porte e comércio configurados como contravenção seus preços sobem vertiginosamente, se tornou um negócio de risco, e naturalmente compreende lucros mais altos. Uma espécie de atavismo da tradicional ‘famiglia’ italiana faz reeditar a máfia em solo americano, que se tornava agora responsável pela formação de uma rede de corrupção, geração de violência, sonegação de impostos, assassinatos e toda a sorte de contravenções possíveis ligadas a qualquer comercio ilícito. A lei na verdade não surtiu efeito, produzindo uma enormidade de problemas, outras drogas passaram a ser usadas como forma de substituição ao álcool e embora houvesse a proibição do consumo, isto simplesmente não ocorreu.
A lei então foi revogada depois de 13 anos, mas a agência de estado criada com a finalidade de repressão não foi extinta. Seu secretário, o sr. Harry Anslinger mudou o foco da ação, ele inclui a maconha no rol dos produtos proibidos, fechando o cerco de maneira mais contundente em  relação às outras substâncias que já haviam sofrido restrições: - os opiáceos e a cocaína. Dessa forma a ojeriza relativa a determinados grupos étnicos e principalmente a certos tipos de produtos usados pelos mesmos encontra um certo tipo de respaldo legal para um controle social. Estes grupos e seus hábitos são bodes expiatórios perfeitos que passam a ocupar desde então o lugar princeps da encarnação do mal. Estas restrições implantadas no solo americano passam em virtude de acordos internacionais a influenciar políticas de controle social ao redor do mundo. A droga então vira caso de polícia. Existe a percepção de malefícios oriundos do abuso de drogas do ponto de vista sanitário, mas a política que pretende regulamentar essa atividade é pensada sobretudo num escopo policialesco. A droga é proibida e seu uso se torna uma contravenção policial. Mas como fechar aos olhos diante do que os fatos demonstram: - a proibição não funciona muito bem.


UMA PEQUENA DIGRESSÃO SOBRE O QUE ALGUNS PSICANALISTAS DISSERAM

Antes mesmo de fazer qualquer notação acerca do uso de produtos tóxicos pelo viés da psicanálise, localizemos com Lacan uma interessante observação que ele faz sobre a proibição, não a proibição das drogas em específico, mas acerca do sentido da proibição. No seminário “A ética da psicanálise”, o psicanalista diz que a proibição designa o objeto de gozo e por isto mesmo sustenta o desejo. Lacan nos conduz a percepção de que não há nenhuma proibição sobre o que ninguém quer, é a proibição que engendra o desejo. O ordenamento: ‘Não mentirás’ produz o desejo de mentir, “nesse ‘Não mentirás’ como lei, está incluída a possibilidade da mentira como desejo mais fundamental”. (Lacan, 1988) A partir desta constatação podemos retornar a questão da droga. A proibição do consumo de estupefacientes não apenas fracassa no seu propósito de acabar com a droga, como também não inibe seu consumo nem seus efeitos deletérios. Para Rubio provoca um retorno acrescido da pulsão de morte. A obstinação da luta contra as drogas produz o que chamamos “os efeitos perversos da proibição”: a elevação do preço dos produtos, um aumento espetacular de consumidores, do tráfico, da criminalidade etc. (Rubio)
Apesar de toda a orientação contrária que é dedicada à droga pelos órgãos públicos pode-se constatar, sem grandes dificuldades, que ela é um produto sempre disponível. Mesmo com todos estes cerceamentos normativos acerca de uma legislação que conduz a relação do sujeito com o tóxico, sabemos que a droga como um produto permanece do ponto de vista da economia - um líder de mercado. E isso ocorre a despeito de todas as ações policiais ou ditames jurídicos. Assim podemos concluir que, se é a lei que faz o pecado não é a proibição que produz a abstinência.
Eric Laurent, em “Tres observaciones sobre la toxicomania” faz algumas observações acerca da economia de mercado e da política antidrogas. O autor destaca artigos feitos na publicação conservadora “The Economist”, que aponta como muito razoáveis. Laurent ressalta que os redatores, fiéis aos seus princípios por seu liberalismo econômico, advogam fortemente pela legislação da droga. Se o tóxico é ilícito, sua comercialização é uma contravenção. Assim, ele não é passível de uma regulamentação pela economia de mercado. O princípio é de que o tóxico seja identificado absolutamente pelas leis de mercado e que se possa negociar agora segundo estas leis. A droga deveria ser legalizada para que não rendesse mais nada a ninguém. (Laurent, 1990) Essa posição é igualmente defendida por Gary Becker, professor de Economia da Universidade de Chicago, prêmio Nobel de economia no ano de 1992.
Maria Lúcia Karam comenta sobre a conjunção de aspectos legais e econômicos no contexto da proibição da droga e faz um comentário bastante crítico sobre o assunto:

Mas, acaso se esgotasse apenas na ineficácia, talvez não fosse tão grave a irracionalidade da criminalização. Despejando-se sobre os consumidores, que, além de atingidos pelos maiores riscos à saúde, sofrem a superexploração decorrente dos preços artificialmente elevados, a, freqüentemente, levá-los a se empregar no tráfico ou a adotar a prática de outros comportamentos ilícitos para obter a droga, os altos custos sociais da criminalização se espraiam pelo conjunto das sociedades que, sem perceber a irracionalidade de suas reivindicações, clamam pela solução penal – na realidade, a própria criadora dos problemas que, enganosamente, anuncia resolver. (Karam, 2000)

Dessa forma que podemos perceber como os ordenamentos jurídicos ou as leis de mercado, ainda que pudessem ser concebidos na mais concreta racionalidade, parecem permanecer insuficientes para dar condução a algum encaminhamento realmente efetivo no que diz respeito à droga e o uso toxicomaníaco. Questões outras de natureza muito diversa se imiscuem no trato da toxicomania e do alcoolismo enquanto fenômenos clínicos.
Encerraremos com uma observação intrigante feita pela equipe do IRS (Institut de Recherches Spécialisées), grupo no qual participa o conhecido psicanalista Hugo Freda: “a droga se define por sua função. Com efeito, como não se dar conta que se a droga alcança sucesso é para dizer trivialmente, que ela é útil?” Ora, qual é a dimensão desta afirmativa? Como pensar em uma utilidade na droga? A resposta, talvez aparentemente simples e ingênua seja que a droga surge como um dos produtos que o sujeito pode gozar. Não entraremos nesta ocasião na seara que se abre a partir desta observação, deixemo-la apenas como um ponto de interrogação para avançarmos mais em outro trabalho.


BIBLIOGRAFIA


Burgierman, D. R. – Maconha - Coleção Para Saber Mais Super Interessante. Editora Abril, 2002

Lacan, J. O seminário – Livro 7 – A ética da psicanálise. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988
Karam, M. L. – Legislação Brasileira sobre Drogas: História recente – A criminalização da diferença. in ACSELRAD, G. Avessos do prazer – drogas, aids e direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000
Laurent, E. – Tres observaciones sobre la toxicomania in Sujeto, goce y modernidad – Fundamentos de la clínica. Instituto del Campo Freudiano. Atuel-Tya. Publicado na Revista Quarto. Nº. 42. 1990

Lemos, I.  – A toxicomania e o discurso da ciência. Mental: Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC – v. 2, n.3, novembro 2004 – Barbacena, MG: UNIPAC

Pacheco, L.V. – Dissertação de Mestrado “Não Pense, acredite e faça”  Sobre as estratégias de construção de subjetividade nos alcóolicos anônimos. Mestrado em psicologia social da UFMG.

revue toxibase – revue documentaire n º 3, 1993 in www.toxibase.org

RUBIO, G. – Le toxicomane: un homme de parole – Forum Psychanalytique de Bruxelles – Foruns du champ lacanien, journée du 11 juilet, 1999. Versions du Symptôme. In: www.champlacanien.france.net.

Rodrigues, T. M. S. – A infindável guerra Americana, Brasil, EUA e o narcotráfico no continente. São Paulo em Perspectiva, 16(2), 2002.

Santiago, J. – A droga do toxicômano – Uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor Ltda. 2001.

Vergara, R. – Drogas – Coleção Para Saber Mais. Super Interessante. Editora Abril, 2003