segunda-feira, 21 de março de 2011

UM POUCO SOBRE A HISTÓRIA DAS DROGAS E DE SUA PROIBIÇÃO, OU COMO O CRIME SEM VÍTIMA SE TORNOU UMA QUESTÃO DE ESTADO













            NO PRINCÍPIO...

Os gregos antigos usavam a palavra phármakon que tinha conotações que denotavam ao mesmo tempo droga curativa, remédio, mas também veneno. Na Odisséia de Homero surge uma passagem na qual os efeitos do phármakon são descritos. Em um banquete, o rei Menelau ao invocar a memória de Ulisses faz com que seus convidados mergulhem em profunda melancolia, e nesse momento: ‘à filha de Zeus, Helena, ocorreu uma idéia. Subitamente, jogou uma droga (phármakon) na cratera em que se servia bebida: essa droga, apaziguando a dor, a cólera, dissolvia todos os males; uma dose da bebida impedia, durante o dia todo, a quem dela bebesse, de derramar uma lágrima, ainda que tivesse perdido o pai e a mãe, ainda que, com seus próprios olhos, tivesse visto morrer, sob a espada, um irmão ou um filho amado!... Remédio engenhoso, presente obtido, por Polidamna do Egito: a gleba nessa país produz, juntamente com o trigo, mil ervas diversas, umas venenos, outras remédios.’ (Santiago, 2001).
            Remonta dessa maneira o conhecimento da droga e seu uso a tempos longínquos, mesmo antes da escrita de Homero podemos recolher fragmentos do uso da droga e do álcool pelo homem desde tempos primevos.
            Existe a hipótese de que o álcool teria sido descoberto através de sucos fermentados e de vegetais ricos em amido e açúcar. Consta que:
            “... por acaso, ou mesmo de propósito, algumas frutas possivelmente uvas, foram deixadas por algum tempo em um vasilhame primitivo ou em algum buraco de uma rocha. O sol e a ação de criaturas invisíveis, que agora sabemos chamavam-se fermentos, estragaram as frutas. Elas se transformaram em uma massa pastosa. Mas um homem sedento e faminto ingeriu a massa. Nós podemos apenas imaginar o impacto desse acidente fermentativo. Não apenas a sua fome e sua sede foram saciadas, mas ele se sentiu inexplicavelmente bem. Menos cansado, mais corajoso... Estava descoberto o álcool’ (Mark Keller apud MANSUR, 1998, Pacheco).
            Outros produtos hoje considerados tóxicos ilícitos também foram usufruídos por diversas culturas em um grande leque de aplicações. Pairam dúvidas sobre qual teria sido a primeira droga psicoativa utilizada pelo homem, o que se pode saber com certeza foi que isto ocorreu a milhares de anos.
            As propriedades da papoula de onde se extrai o ópio são conhecidas há pelo menos 8.000 anos no Mediterrâneo ocidental. Seu uso medicinal foi muito difundido sendo utilizada no Oriente Médio como sedativo para dor e como afrodisíaco. Os faraós no Egito o usavam como ingrediente na fabricação de remédios, e imperadores romanos se serviam da droga para dormir. Com a evolução dos tempos e as investigações da ciência, a droga foi adquirindo cada vez formas mais refinadas como por exemplo, a morfina, isolada em 1804, e desde então utilizada como eficiente anestésico. Em 1874 foi descoberta a heroína, ainda mais potente que a morfina, revelando-se uma droga com alto poder de dependência. (Vergara, 2003)
A maconha é originária da Ásia Central, entre o Mar Cáspio e o Himalaia na região que compreendia a ex-União Soviética. São encontradas três espécies: Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis. A palavra ‘sativa’ vem do latim cultivada. Suas sementes com alto valor nutritivo serviam para alimentação de homens e animais e do seu caule produzia-se uma fibra de excelente qualidade, que servia para fabricar tecidos e papel. O princípio ativo encontrado na cannabis é o THC (tetrahidrocanabinol), que tem um importante efeito farmacológico e psicoativo tendo tido um papel relevante nas origens da medicina e da religião de muitos povos. O registro mais antigo encontrado da maconha são marcas de cordas impressas em cacos de um vaso de barro encontrado num sítio arqueológico de Yan-Shan, atual Taiwan. É um vaso de 12.000 anos, e acredita-se que as marcas são feitas por cordas de cânhamo. Na primeira farmacopéia conhecida do mundo, do imperador Shen-Nung escrita provavelmente em 2.737 a.C. a maconha era recomendada para dores menstruais, reumatismo, prisão de ventre e malária. (Burgierman, 2002)
A planta foi usada por milênios por vários povos do oriente ao ocidente, além do efeito psicoativo conhecido, valorizava-se sobretudo suas aplicações na fabricação têxtil, e de papeis, bem como os óleos derivados das sementes. A chegada da maconha na América Latina se deu provavelmente junto com a de seus colonizadores. A Coroa espanhola e portuguesa ordenaram o plantio do cânhamo já no século XVI, para garantir o suprimento de tecidos – fundamental para que os navios pudessem reparar suas velas antes da viagem de volta à Europa. Os escravos provenientes da África para o Brasil, sobretudo das colônias angolanas, já conheciam a planta e a palavra ‘maconha’, vem do dialeto quimbundo, do idioma banto de Angola. (Burgierman, 2002)
Em 1789, Napoleão invadiu o Egito com suas tropas, um dos motivos que o levaram a tal investida foi provavelmente a intenção de destruir as plantações de cânhamo que abasteciam de tecido a poderosa inimiga, a Marinha Inglesa. Parte de Napoleão a primeira lei do mundo moderno proibindo a maconha. Os egípcios fumavam o haxixe e simplesmente ignoraram a lei. (Burgierman, 2002)
O episódio da cocaína também não é menos interessante. Conheciam-se os relatos sobre o uso da folha da coca pelos índios sul-americanos, sobretudo das regiões andinas do Peru, Bolívia, Colômbia. Mascar folha de coca é um habito antigo e muito difundido nessas culturas milenares, e é muito anterior à chegada dos colonizadores. Todas essas culturas se utilizavam da folha da coca em função de sua ação farmacológica capaz de inibir os efeitos causados pelas elevadas altitudes. A folha de coca bem como a cocaína diminuem a fadiga, o cansaço, o sono e a fome.
A droga foi sintetizada em 1860 por Albert Niemann e teve entre os cientistas da época que pesquisaram sobre seus efeitos, o futuro pai da psicanálise Sigmund Freud. A droga foi responsável por um embaraçoso acontecimento na vida de Freud e seu amigo Ernest Von Fleisch-Marxow, pode-se imaginar os efeitos deste inbroglio através da ausência total dos textos de Freud sobre a cocaína em suas obras completas.


SOB AS BARBAS DA LEI



A partir de 1.900, grande parte das drogas conhecidas por nós hoje se encontravam disponíveis nas farmácias e drogarias sendo possível comprá-las até mesmo pelos correios diretamente de seus fabricantes. Existem obviamente casos de dependência de ópio, morfina, heroína, mas o fenômeno ainda não chamava a atenção geral ocorrendo apenas alguns artigos em periódicos e revistas que alertavam para o risco. Os juízes e policiais não tinha sido até aquele momento convocados para tratar a questão, que não era ainda assunto jurídico, político ou de ética social (Escohotado, APUD Pacheco, 1996 ).
Fenômenos sociais porém vão imprimir um novo olhar sobre a questão do uso de álcool e drogas na sociedade, vamos localizar no seio daquela pátria que diz ser guardiã da liberdade, a semente do que veio a ser tornar uma política de proibição e restrição de uso e comercialização das drogas num nível planetário. Os Estados Unidos da América, a pátria dos homens livres, teve um protagonismo importante no que se transformou uma política mundial de combate às drogas.
A origem destas políticas proibicionistas remonta à conferência de Xangai (1909) e a de Haia (1911), nas quais no terreno diplomático, os Estados Unidos, inicialmente constrange e depois obriga aos signatários das conferências, a coibir em seus territórios o uso de opiáceos e cocaína que não atendessem recomendações médicas (Rodrigues 2002). Logo depois há um exemplo paradigmático de uma lei que fracassou dentro do próprio solo americano, a Lei Seca. Não foi contudo seu fracasso que fez arrefecer o ímpeto normativista, travestido de bastião da moral, que escondia em sua base uma motivação racial.
A América no começo do século XX vicejava como uma nação em franca expansão. Sem mão de obra escrava desde 1865, para seu solo migrava toda sorte de populações que não encontravam em sua pátria condições de manutenção e subsistência, ou simplesmente por que buscavam naquele lugar novas oportunidades. Contingentes expressivos se dirigiam para a terra prometida; asiáticos (chineses), europeus (italianos, irlandeses), latinos (mexicanos), judeus de todas as partes e ainda a população afro-descendente que havia sido levada para a América como escrava e que lá permaneceu.
Os grupos sociais portam mesmo que no exílio inúmeros elementos de sua cultura, sua língua, sua alimentação, religião, hábitos e costumes, pode-se dizer um sujeito foi expatriado de sua terra, mas não dos elementos que compuseram sua formação. O hábito de usar algum produto estupefaciente pode ser pensado como um elemento pertinente a aspectos culturais de alguns grupos. As incontáveis utilizações possíveis que as drogas encontravam estavam inseridas nos hábitos e costumes de destes grupos servindo a finalidades múltiplas - ascese religiosa, uso farmacoterâpicos, como veículo para se alcançar estados alterados de consciência, para obter efeitos de sedação ou tratamento, etc.
A sociedade estadunidense se insurge diante dos abusos decorrentes do uso de alguns destes produtos. Os excessos tornam-se mal vistos e neste contexto surge um movimento de inspiração puritana que se chama ‘Movimento de Temperança’, que tinha como princípio a condenação da embriaguez. O excesso no uso do álcool era criticado por ser contra princípios morais, médicos, econômicos e nacionalistas. (Pacheco, 1998).
O movimento que inicialmente era contra o uso abusivo acaba por se tornar francamente contrário ao uso do álcool de maneira geral. Por pressão de grupos populares que se orientavam por rígidos princípios morais, o Congresso Americano fez uma Emenda a Constituição e institui a Lei Seca. “O puritanismo organizado norte-americano, conseguira então, levar seus homens às instâncias representativas, ao termo em que as práticas governamentais do estado aceleravam a marcha das medidas de controle social com base no rastreamento dos hábitos e disciplinarização das condutas” (Rodrigues, 2002).
A lei vigorou de 1920 a 1933 e se mostrou o que podemos chamar de ‘tiro pela culatra’. Ela proibia em todo território nacional o uso, a fabricação e venda de bebidas alcoólicas. A lei que pretendia “que os barris fossem coisa do passado, que as cadeias e casas de correção ficassem para sempre vazias, que todos os homens voltassem a caminhar erguidos, e sorridentes, ficariam todas as mulheres e crianças”. (Escohotado, APUD Pacheco, 1998)
O engano logo se revelou. Tendo o álcool passado para categoria de substância ilícita, surgiu rapidamente uma rede clandestina que o fazia circular. Agora sob a pena da lei, com seu uso, porte e comércio configurados como contravenção seus preços sobem vertiginosamente, se tornou um negócio de risco, e naturalmente compreende lucros mais altos. Uma espécie de atavismo da tradicional ‘famiglia’ italiana faz reeditar a máfia em solo americano, que se tornava agora responsável pela formação de uma rede de corrupção, geração de violência, sonegação de impostos, assassinatos e toda a sorte de contravenções possíveis ligadas a qualquer comercio ilícito. A lei na verdade não surtiu efeito, produzindo uma enormidade de problemas, outras drogas passaram a ser usadas como forma de substituição ao álcool e embora houvesse a proibição do consumo, isto simplesmente não ocorreu.
A lei então foi revogada depois de 13 anos, mas a agência de estado criada com a finalidade de repressão não foi extinta. Seu secretário, o sr. Harry Anslinger mudou o foco da ação, ele inclui a maconha no rol dos produtos proibidos, fechando o cerco de maneira mais contundente em  relação às outras substâncias que já haviam sofrido restrições: - os opiáceos e a cocaína. Dessa forma a ojeriza relativa a determinados grupos étnicos e principalmente a certos tipos de produtos usados pelos mesmos encontra um certo tipo de respaldo legal para um controle social. Estes grupos e seus hábitos são bodes expiatórios perfeitos que passam a ocupar desde então o lugar princeps da encarnação do mal. Estas restrições implantadas no solo americano passam em virtude de acordos internacionais a influenciar políticas de controle social ao redor do mundo. A droga então vira caso de polícia. Existe a percepção de malefícios oriundos do abuso de drogas do ponto de vista sanitário, mas a política que pretende regulamentar essa atividade é pensada sobretudo num escopo policialesco. A droga é proibida e seu uso se torna uma contravenção policial. Mas como fechar aos olhos diante do que os fatos demonstram: - a proibição não funciona muito bem.


UMA PEQUENA DIGRESSÃO SOBRE O QUE ALGUNS PSICANALISTAS DISSERAM

Antes mesmo de fazer qualquer notação acerca do uso de produtos tóxicos pelo viés da psicanálise, localizemos com Lacan uma interessante observação que ele faz sobre a proibição, não a proibição das drogas em específico, mas acerca do sentido da proibição. No seminário “A ética da psicanálise”, o psicanalista diz que a proibição designa o objeto de gozo e por isto mesmo sustenta o desejo. Lacan nos conduz a percepção de que não há nenhuma proibição sobre o que ninguém quer, é a proibição que engendra o desejo. O ordenamento: ‘Não mentirás’ produz o desejo de mentir, “nesse ‘Não mentirás’ como lei, está incluída a possibilidade da mentira como desejo mais fundamental”. (Lacan, 1988) A partir desta constatação podemos retornar a questão da droga. A proibição do consumo de estupefacientes não apenas fracassa no seu propósito de acabar com a droga, como também não inibe seu consumo nem seus efeitos deletérios. Para Rubio provoca um retorno acrescido da pulsão de morte. A obstinação da luta contra as drogas produz o que chamamos “os efeitos perversos da proibição”: a elevação do preço dos produtos, um aumento espetacular de consumidores, do tráfico, da criminalidade etc. (Rubio)
Apesar de toda a orientação contrária que é dedicada à droga pelos órgãos públicos pode-se constatar, sem grandes dificuldades, que ela é um produto sempre disponível. Mesmo com todos estes cerceamentos normativos acerca de uma legislação que conduz a relação do sujeito com o tóxico, sabemos que a droga como um produto permanece do ponto de vista da economia - um líder de mercado. E isso ocorre a despeito de todas as ações policiais ou ditames jurídicos. Assim podemos concluir que, se é a lei que faz o pecado não é a proibição que produz a abstinência.
Eric Laurent, em “Tres observaciones sobre la toxicomania” faz algumas observações acerca da economia de mercado e da política antidrogas. O autor destaca artigos feitos na publicação conservadora “The Economist”, que aponta como muito razoáveis. Laurent ressalta que os redatores, fiéis aos seus princípios por seu liberalismo econômico, advogam fortemente pela legislação da droga. Se o tóxico é ilícito, sua comercialização é uma contravenção. Assim, ele não é passível de uma regulamentação pela economia de mercado. O princípio é de que o tóxico seja identificado absolutamente pelas leis de mercado e que se possa negociar agora segundo estas leis. A droga deveria ser legalizada para que não rendesse mais nada a ninguém. (Laurent, 1990) Essa posição é igualmente defendida por Gary Becker, professor de Economia da Universidade de Chicago, prêmio Nobel de economia no ano de 1992.
Maria Lúcia Karam comenta sobre a conjunção de aspectos legais e econômicos no contexto da proibição da droga e faz um comentário bastante crítico sobre o assunto:

Mas, acaso se esgotasse apenas na ineficácia, talvez não fosse tão grave a irracionalidade da criminalização. Despejando-se sobre os consumidores, que, além de atingidos pelos maiores riscos à saúde, sofrem a superexploração decorrente dos preços artificialmente elevados, a, freqüentemente, levá-los a se empregar no tráfico ou a adotar a prática de outros comportamentos ilícitos para obter a droga, os altos custos sociais da criminalização se espraiam pelo conjunto das sociedades que, sem perceber a irracionalidade de suas reivindicações, clamam pela solução penal – na realidade, a própria criadora dos problemas que, enganosamente, anuncia resolver. (Karam, 2000)

Dessa forma que podemos perceber como os ordenamentos jurídicos ou as leis de mercado, ainda que pudessem ser concebidos na mais concreta racionalidade, parecem permanecer insuficientes para dar condução a algum encaminhamento realmente efetivo no que diz respeito à droga e o uso toxicomaníaco. Questões outras de natureza muito diversa se imiscuem no trato da toxicomania e do alcoolismo enquanto fenômenos clínicos.
Encerraremos com uma observação intrigante feita pela equipe do IRS (Institut de Recherches Spécialisées), grupo no qual participa o conhecido psicanalista Hugo Freda: “a droga se define por sua função. Com efeito, como não se dar conta que se a droga alcança sucesso é para dizer trivialmente, que ela é útil?” Ora, qual é a dimensão desta afirmativa? Como pensar em uma utilidade na droga? A resposta, talvez aparentemente simples e ingênua seja que a droga surge como um dos produtos que o sujeito pode gozar. Não entraremos nesta ocasião na seara que se abre a partir desta observação, deixemo-la apenas como um ponto de interrogação para avançarmos mais em outro trabalho.


BIBLIOGRAFIA


Burgierman, D. R. – Maconha - Coleção Para Saber Mais Super Interessante. Editora Abril, 2002

Lacan, J. O seminário – Livro 7 – A ética da psicanálise. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988
Karam, M. L. – Legislação Brasileira sobre Drogas: História recente – A criminalização da diferença. in ACSELRAD, G. Avessos do prazer – drogas, aids e direitos humanos. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000
Laurent, E. – Tres observaciones sobre la toxicomania in Sujeto, goce y modernidad – Fundamentos de la clínica. Instituto del Campo Freudiano. Atuel-Tya. Publicado na Revista Quarto. Nº. 42. 1990

Lemos, I.  – A toxicomania e o discurso da ciência. Mental: Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC – v. 2, n.3, novembro 2004 – Barbacena, MG: UNIPAC

Pacheco, L.V. – Dissertação de Mestrado “Não Pense, acredite e faça”  Sobre as estratégias de construção de subjetividade nos alcóolicos anônimos. Mestrado em psicologia social da UFMG.

revue toxibase – revue documentaire n º 3, 1993 in www.toxibase.org

RUBIO, G. – Le toxicomane: un homme de parole – Forum Psychanalytique de Bruxelles – Foruns du champ lacanien, journée du 11 juilet, 1999. Versions du Symptôme. In: www.champlacanien.france.net.

Rodrigues, T. M. S. – A infindável guerra Americana, Brasil, EUA e o narcotráfico no continente. São Paulo em Perspectiva, 16(2), 2002.

Santiago, J. – A droga do toxicômano – Uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor Ltda. 2001.

Vergara, R. – Drogas – Coleção Para Saber Mais. Super Interessante. Editora Abril, 2003



terça-feira, 1 de março de 2011

Toxicomania na cultura






            Faremos uma pequena localização sobre a droga e sua presença na cultura. Não se trata aqui de tomar uma posição, mas apenas produzir um sobrevôo sobre a longa e intrincada relação que existe entre os homens e a droga. Para tanto tentaremos fazer uma breve localização histórico-econômica, para em seguida trazer algumas contribuições teóricas da psicanálise sobre o assunto.
Podemos começar afirmando que a incidência da droga na cultura e na civilização não é exatamente um fato novo. Na atualidade a sociedade vê na droga a raiz de vários malefícios sociais, os produtos tóxicos se tornaram a encarnação do mal, e as diretrizes políticas em relação às drogas, ocorrem através da montagem de um aparato bélico, que sem nenhuma redundância é conhecido como ‘guerra às drogas’. As drogas se tornaram um eixo, em torno do qual gira um carrossel de violência, corrupção, exclusão e invisibilidade social, ignorância, abuso, absurdos.
            Não foi, contudo, sempre assim. Devemos começar nos perguntando sobre a sua presença entre nós. Se as drogas mantêm, uma intimidade tão estreita com o mal, com o pecado, se são proibidas, como e por que elas existem?
            Esta resposta é na verdade muito simples, estamos tão acostumados a pensar na ilicitude das drogas, que quando pensamos nisto, jogamos junto com a água da bacia o bebê, e não nos lembramos que nem sempre as drogas foram proibidas, algumas que hoje são, em outros momentos não foram, e outras que atualmente são lícitas, outrora já levaram à prisão.
            A ilicitude das drogas diz respeito à sua proibição, a ilegalidade de seu uso. Do ponto de vista jurídico, conduz à seguinte interpretação; quem o faz, - o ilícito, comete crime. Mas, como nos perguntávamos no começo, se são proibidas, como estão aí há tanto tempo? A resposta tão obvia é que; - elas não eram proibidas, a maior parte de nós desde que nasceu já escuta assim esta história, mas a proibição do uso de drogas conforme conhecemos hoje, tem data e local de nascimento, são os anos vinte do século vinte na puritana nação estadunidense.
A história das drogas pode servir de maneira elucidativa para ilustrar como se dão muitas descobertas e avanços na própria história da humanidade. As drogas, bem como as substâncias que são usadas como medicamentos e mesmo alimentos, foram descobertas, em sua maioria de forma casual. É num exercício de experimentação, à base de acertos e erros, que se toma conhecimento dos produtos que podem ser benéficos ou maléficos à saúde. É como se uma espécie de lei de Darwin, fosse aplicada ao conhecimento e utilização, dos elementos da natureza que se encontravam disponíveis. Os melhores alimentos e produtos seriam selecionados para a utilização rotineira, pois serviam de algum modo à manutenção e preservação da vida. É desse modo que o como e porque da presença das drogas na cultura, diz respeito ao como e porque da evolução de uma espécie, e sua capacidade de adaptação e sobrevivência. Deve-se ter ciência que :
“O homem primitivo explorou o universo farmacológico com uma espantosa perfeição. Nossos ancestrais não deixaram por descobrir quase nenhum estimulante, alucinógeno ou estupefaciente naturais. Não podemos esquecer que, se a farmacologia moderna deu uma série de novos produtos sintéticos, não fez grandes descobertas básicas no campo das drogas naturais, ela simplesmente aperfeiçoou os métodos de extração, purificação e combinação. Pelas evidências, podemos supor que o homem primitivo experimentou todas as raízes, galhos, folhas e flores, todas as sementes, frutos e fungos do seu ambiente” [1]
 É verdadeiramente surpreendente como a espécie humana conseguiu se instrumentalizar e produzir conhecimento. Podemos inferir que uma parte importante de seu desenvolvimento se deu pela capacidade de observar as outras espécies e tirar conclusões sobre seus modos de vida, seus recursos, suas habilidades. Desse modo o homem serve-se de instrumentos que permitem imitar o que algumas espécies têm de melhor ou mesmo ultrapassá-los. Este seria o caso das rodas que nos permitem andar tão mais rápido e de asas que nos permitem voar. Os homens não tendo determinada habilidade, ou sendo esta reduzida, buscaram através de equipamentos e instrumentos superar essas limitações.  Se isto se aplica á fenômenos mecânicos, por assim dizer, (é o caso de rodas ou asas) aplica-se também no que diz respeito à utilização de alimentos e medicamentos.
Indo mais adiante neste raciocínio podemos ilustrá-lo  com a história sobre a descoberta do café, por exemplo, quando um pastor de cabras observava seu rebanho que comia sempre a frutinha vermelha, e logo após a ingesta, ele percebia que os animais pareciam repentinamente mais animados e mais dispostos. Este pastor africano que se chamaria Kaldi colhe as frutas e as esmaga junto com manteiga, tendo assim chegado a uma pasta tonificante que ele passou a utilizar para consumo próprio[2]. Este produto estimulante, passa a ser logo utilizado pelos árabes já no século XV, e hoje encontra-se tão profundamente difundido como um hábito, que aqui no Brasil, pela manhã, batizamos a nossa primeira refeição matinal de ‘café da manhã’.
Esta curiosa história ilustra o que chamamos acima de ‘achados casuais’, e nos permite perceber como a observação ou mesmo a imitação dos hábitos de outras espécies conduziu à introdução de alimentos e produtos na cultura dos homens.
Deve-se também levar em conta, que os produtos, uma vez inseridos na rotina cotidiana, passam a ser sinônimo de conforto e mesmo qualidade de vida. Sob este prisma, pesa de maneira importante os aspectos que dizem respeito ao valor econômico de um determinado produto. Podemos ampliar nosso olhar, e vislumbrar que o início da grande globalização que ganhou corpo com as navegações no século XVI, o que os países do velho mundo buscavam eram sobretudo as especiarias. Essa verdadeira odisséia foi responsável pela descoberta de um novo mundo, e não se pode permanecer desapercebido quanto aos grandes interesses econômicos envolvidos na empresa. Vários produtos e serviços (se quisermos chamar assim) passam a compor o novo quadro geo-econômico que se expande muito além-mar. A expansão tem como motivação, o acesso às especiarias, os metais preciosos, e como disse a pouco, os serviços, é neste momento que se agiganta a busca de escravos negros na África, sendo eles mesmos força de trabalho para a aquisição e produção de alguns insumos, e ao mesmo tempo, servem ainda de moeda de troca.
Este enfoque econômico parece ser importante para se apreciar de modo adequado as articulações que estamos fazendo. O professor Henrique Carneiro chama a nossa atenção para grandes ciclos comerciais que se constituíram em torno do tráfico de drogas. Ressalta-se que a palavra droga, deriva do holandês antigo ‘droog’, é um conceito extremamente polissêmico, havendo controvérsias até mesmo sobre a origem do termo. A palavra holandesa significa folha seca, e remete ao fato de que a maior parte dos medicamentos das primeiras farmacopéias era constituída de vegetais secos.
Carneiro define que seus significados para a palavra ‘abrangem tudo o que se ingere e que não constitui alimento, embora muitos alimentos também possam ser designados como drogas: bebidas alcoólicas, especiarias, tabaco, açúcar, chá, café, chocolate, mate, guaraná, ópio... assim como inúmeras plantas e remédios.’[3]
E foi em torno destes produtos que se constituíram três grandes ciclos comerciais, a saber: no século XVI, o das especiarias e produtos secos do ultramar, responsável pela era das descobertas marítimas, ‘o segundo baseado na produção e comércio do açúcar, do aguardente e tabaco, marcou a formação do sistema colonial desde o século XVII e montou a economia atlântica, baseada no tráfico de escravos e das drogas por eles produzidas’. E por fim o terceiro ciclo, que começou no século XVII, mas foi no século XVIII que produziu desequilíbrio na balança comercial inglesa com a Ásia, que foi o das bebidas quentes e excitantes. [4] Estas observações são úteis para que se possa localizar alguns aspectos acerca da presença das drogas e as importantes relações econômicas que giraram em seu entorno.
Seguindo o fio por onde íamos podemos então afirmar que é possível remontar a presença das drogas à tempos imemoriais, é também possível detectar que em vários momentos ela participou de uma maneira importante nas relações e interesses comerciais de povos e países. Estas pontuações nos conduzem a concluir junto com outros autores, que se a droga encontra–se tão profundamente presente entre os hábitos humanos, é provavelmente em função da maneira que se dá sua utilização, ou quiçá sua utilidade.
Encontramos Hugo Freda e a equipe que compõe o I.R.S. (Institut de Recherches Spécialisées) em Reims fazendo a seguinte formulação: ‘a droga se define por sua função. Com efeito, como não se dar conta que se a droga alcança tanto sucesso é, para dizer trivialmente, que ela é útil?’ [5] É uma observação que nos parece paradoxal, mas talvez ela seja importante, a droga pode ser útil para que?


Algumas contribuições de Freud

Freud nunca se deteve muito longamente sobre o tema das drogas, mas fez algumas observações que podem ser consideradas relevantes. É no texto ‘O mal estar na civilização’ (1929), que ele faz um comentário que provavelmente embasa um raciocínio como este, o de que a droga pode ser útil. As considerações freudianas, embora pontuais, serviram como referência para os seus contemporâneos, bem como ainda hoje contribuem de forma importante para as articulações teóricas acerca dessa questão. Pode-se destacar da leitura freudiana algumas idéias que ficaram mais conhecidas, e neste trabalho vale a pena localizá-las.
Por exemplo, em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905-1977), quando o autor apresenta a embriaguez etílica como um recurso para driblar a censura. No apontamento freudiano, chiste e embriaguez revelam o fio de um mesmo princípio, no qual a censura pode ser suprimida. Um dos dons do álcool é a mudança que ele provoca no estado de espírito. As forças inibidoras se curvam às disposições eufóricas que são produzidas por vias tóxicas. O chiste permite driblar a censura, e algo análogo ocorrerá na embriaguez, na medida mesmo em que ela se presta à mesma função.
Outra consideração freudiana clássica é a que foi aventada em “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (1912-1970) quando o psicanalista encontra nas palavras do poeta Böcklin, a confissão de que a relação do beberrão com o vinho é tão harmoniosa quanto um “casamento feliz”. Freud, nesse trabalho, dedicava-se à tarefa de comentar sobre os impasses recorrentes da relação amorosa, e encontra esta pista do casamento com o copo como o protótipo do casamento feliz. Mas o casamento com o copo é um casamento que paradoxalmente pretere o outro. A observação freudiana permite trazer à luz quão intricada pode ser a relação de um sujeito com um tóxico. Ela permite ilustrar a peculiar adesividade que se encontra em curso na relação que o toxicômano e o bebedor estabelecem com seu produto. Não apenas isso, ela se presta ainda, a chamar a atenção sobre o tratamento dado à questão do encontro com o Outro sexo pelo alcoolista e o toxicômano.
A droga volta à cena em “O mal estar na civilização” (1930-1974), como um método grosseiro e eficaz que permite tratar o mal estar que é inerente ao processo civilizatório. Através da produção de sensações prazerosas, os tóxicos alteram as condições que dirigem a sensibilidade e, assim, o sujeito se mantém afastado dos estímulos que lhe são desagradáveis. O método permite evitar o sofrimento quando o organismo encontra satisfação nos processos químicos, bem como conduz ainda a um grau de independência do mundo externo. Freud cita Wilhelm Busch para corroborar suas impressões; “Aquele que tem preocupações, tem também aguardente” (FREUD 1930 – 1974. p. 93). Pode-se dizer que a visada freudiana permite pensar o uso do álcool e da droga como um recurso que de algum modo oferece ao sujeito que dele se utiliza uma espécie de tratamento. O psicanalista adverte, contudo, do risco que existe nas soluções que consideram o gozo antes da cautela. Esse refúgio em um mundo próprio tem como conseqüência um afastamento do laço social. Não escapa a Freud que este tipo de solução, leva habitualmente a um grande dispêndio de energia.
A partir destas observações, pode-se reter um direcionamento oferecido por Freud para a questão do uso de produtos inebriantes. No uso do álcool encontra-se uma maneira de escapar das injunções provenientes da censura. A fala do homem embriagado e o dito chistoso funcionam como um recurso capaz de driblar as forças inibidoras. Pode-se perceber neste recorte que o uso do álcool de alguma maneira funciona na economia psíquica do sujeito.
Outro ponto relevante é o que diz respeito ao “casamento feliz” com o copo. A idéia é desenvolvida enquanto o psicanalista considera sobre a vida amorosa, e é neste contexto, diante da constatação dos impasses a que habitualmente a vida amorosa conduz, que Freud pinça esta curiosa observação, de que haveria um casamento feliz. O casamento feliz é, todavia um casamento sem parceiro. Este breve achado é elucidativo, o toxicômano e o alcoolista, casados como estão, com a droga ou com o copo, normalmente pouco disponibilizam de sua libido para outros tipos de investimento. O mal estar sempre presente para os sujeitos falantes diante do encontro com o Outro sexo, parece encontrar um encaminhamento definitivo na solução tóxico-etílica.
E por fim na trajetória freudiana, este ponto que parece muito importante a se considerar, a idéia de uma espécie de tratamento pelo uso dos tóxicos, conforme é pensado em “O mal estar”. A observação de Freud permite, e isto não é pouco, sair do eixo de um raciocínio normativo-moral que localiza a droga como uma forma de desvio moral, frouxidão da vontade, para pensá-la como forma de tratamento que alguns sujeitos tentam diante de seus impasses na cultura. Entende-se dessa forma, que as impressões de Freud, mesmo que circunstanciais, permitem um avanço epistemológico para se apreciar de forma mais lúcida esta zona, ainda tão nebulosa.


[3] Carneiro, H. www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htm
[4] Carneiro, op. cit



Guilhobel, 1820. Interior de uma casa de baixo povo