terça-feira, 1 de março de 2011

Toxicomania na cultura






            Faremos uma pequena localização sobre a droga e sua presença na cultura. Não se trata aqui de tomar uma posição, mas apenas produzir um sobrevôo sobre a longa e intrincada relação que existe entre os homens e a droga. Para tanto tentaremos fazer uma breve localização histórico-econômica, para em seguida trazer algumas contribuições teóricas da psicanálise sobre o assunto.
Podemos começar afirmando que a incidência da droga na cultura e na civilização não é exatamente um fato novo. Na atualidade a sociedade vê na droga a raiz de vários malefícios sociais, os produtos tóxicos se tornaram a encarnação do mal, e as diretrizes políticas em relação às drogas, ocorrem através da montagem de um aparato bélico, que sem nenhuma redundância é conhecido como ‘guerra às drogas’. As drogas se tornaram um eixo, em torno do qual gira um carrossel de violência, corrupção, exclusão e invisibilidade social, ignorância, abuso, absurdos.
            Não foi, contudo, sempre assim. Devemos começar nos perguntando sobre a sua presença entre nós. Se as drogas mantêm, uma intimidade tão estreita com o mal, com o pecado, se são proibidas, como e por que elas existem?
            Esta resposta é na verdade muito simples, estamos tão acostumados a pensar na ilicitude das drogas, que quando pensamos nisto, jogamos junto com a água da bacia o bebê, e não nos lembramos que nem sempre as drogas foram proibidas, algumas que hoje são, em outros momentos não foram, e outras que atualmente são lícitas, outrora já levaram à prisão.
            A ilicitude das drogas diz respeito à sua proibição, a ilegalidade de seu uso. Do ponto de vista jurídico, conduz à seguinte interpretação; quem o faz, - o ilícito, comete crime. Mas, como nos perguntávamos no começo, se são proibidas, como estão aí há tanto tempo? A resposta tão obvia é que; - elas não eram proibidas, a maior parte de nós desde que nasceu já escuta assim esta história, mas a proibição do uso de drogas conforme conhecemos hoje, tem data e local de nascimento, são os anos vinte do século vinte na puritana nação estadunidense.
A história das drogas pode servir de maneira elucidativa para ilustrar como se dão muitas descobertas e avanços na própria história da humanidade. As drogas, bem como as substâncias que são usadas como medicamentos e mesmo alimentos, foram descobertas, em sua maioria de forma casual. É num exercício de experimentação, à base de acertos e erros, que se toma conhecimento dos produtos que podem ser benéficos ou maléficos à saúde. É como se uma espécie de lei de Darwin, fosse aplicada ao conhecimento e utilização, dos elementos da natureza que se encontravam disponíveis. Os melhores alimentos e produtos seriam selecionados para a utilização rotineira, pois serviam de algum modo à manutenção e preservação da vida. É desse modo que o como e porque da presença das drogas na cultura, diz respeito ao como e porque da evolução de uma espécie, e sua capacidade de adaptação e sobrevivência. Deve-se ter ciência que :
“O homem primitivo explorou o universo farmacológico com uma espantosa perfeição. Nossos ancestrais não deixaram por descobrir quase nenhum estimulante, alucinógeno ou estupefaciente naturais. Não podemos esquecer que, se a farmacologia moderna deu uma série de novos produtos sintéticos, não fez grandes descobertas básicas no campo das drogas naturais, ela simplesmente aperfeiçoou os métodos de extração, purificação e combinação. Pelas evidências, podemos supor que o homem primitivo experimentou todas as raízes, galhos, folhas e flores, todas as sementes, frutos e fungos do seu ambiente” [1]
 É verdadeiramente surpreendente como a espécie humana conseguiu se instrumentalizar e produzir conhecimento. Podemos inferir que uma parte importante de seu desenvolvimento se deu pela capacidade de observar as outras espécies e tirar conclusões sobre seus modos de vida, seus recursos, suas habilidades. Desse modo o homem serve-se de instrumentos que permitem imitar o que algumas espécies têm de melhor ou mesmo ultrapassá-los. Este seria o caso das rodas que nos permitem andar tão mais rápido e de asas que nos permitem voar. Os homens não tendo determinada habilidade, ou sendo esta reduzida, buscaram através de equipamentos e instrumentos superar essas limitações.  Se isto se aplica á fenômenos mecânicos, por assim dizer, (é o caso de rodas ou asas) aplica-se também no que diz respeito à utilização de alimentos e medicamentos.
Indo mais adiante neste raciocínio podemos ilustrá-lo  com a história sobre a descoberta do café, por exemplo, quando um pastor de cabras observava seu rebanho que comia sempre a frutinha vermelha, e logo após a ingesta, ele percebia que os animais pareciam repentinamente mais animados e mais dispostos. Este pastor africano que se chamaria Kaldi colhe as frutas e as esmaga junto com manteiga, tendo assim chegado a uma pasta tonificante que ele passou a utilizar para consumo próprio[2]. Este produto estimulante, passa a ser logo utilizado pelos árabes já no século XV, e hoje encontra-se tão profundamente difundido como um hábito, que aqui no Brasil, pela manhã, batizamos a nossa primeira refeição matinal de ‘café da manhã’.
Esta curiosa história ilustra o que chamamos acima de ‘achados casuais’, e nos permite perceber como a observação ou mesmo a imitação dos hábitos de outras espécies conduziu à introdução de alimentos e produtos na cultura dos homens.
Deve-se também levar em conta, que os produtos, uma vez inseridos na rotina cotidiana, passam a ser sinônimo de conforto e mesmo qualidade de vida. Sob este prisma, pesa de maneira importante os aspectos que dizem respeito ao valor econômico de um determinado produto. Podemos ampliar nosso olhar, e vislumbrar que o início da grande globalização que ganhou corpo com as navegações no século XVI, o que os países do velho mundo buscavam eram sobretudo as especiarias. Essa verdadeira odisséia foi responsável pela descoberta de um novo mundo, e não se pode permanecer desapercebido quanto aos grandes interesses econômicos envolvidos na empresa. Vários produtos e serviços (se quisermos chamar assim) passam a compor o novo quadro geo-econômico que se expande muito além-mar. A expansão tem como motivação, o acesso às especiarias, os metais preciosos, e como disse a pouco, os serviços, é neste momento que se agiganta a busca de escravos negros na África, sendo eles mesmos força de trabalho para a aquisição e produção de alguns insumos, e ao mesmo tempo, servem ainda de moeda de troca.
Este enfoque econômico parece ser importante para se apreciar de modo adequado as articulações que estamos fazendo. O professor Henrique Carneiro chama a nossa atenção para grandes ciclos comerciais que se constituíram em torno do tráfico de drogas. Ressalta-se que a palavra droga, deriva do holandês antigo ‘droog’, é um conceito extremamente polissêmico, havendo controvérsias até mesmo sobre a origem do termo. A palavra holandesa significa folha seca, e remete ao fato de que a maior parte dos medicamentos das primeiras farmacopéias era constituída de vegetais secos.
Carneiro define que seus significados para a palavra ‘abrangem tudo o que se ingere e que não constitui alimento, embora muitos alimentos também possam ser designados como drogas: bebidas alcoólicas, especiarias, tabaco, açúcar, chá, café, chocolate, mate, guaraná, ópio... assim como inúmeras plantas e remédios.’[3]
E foi em torno destes produtos que se constituíram três grandes ciclos comerciais, a saber: no século XVI, o das especiarias e produtos secos do ultramar, responsável pela era das descobertas marítimas, ‘o segundo baseado na produção e comércio do açúcar, do aguardente e tabaco, marcou a formação do sistema colonial desde o século XVII e montou a economia atlântica, baseada no tráfico de escravos e das drogas por eles produzidas’. E por fim o terceiro ciclo, que começou no século XVII, mas foi no século XVIII que produziu desequilíbrio na balança comercial inglesa com a Ásia, que foi o das bebidas quentes e excitantes. [4] Estas observações são úteis para que se possa localizar alguns aspectos acerca da presença das drogas e as importantes relações econômicas que giraram em seu entorno.
Seguindo o fio por onde íamos podemos então afirmar que é possível remontar a presença das drogas à tempos imemoriais, é também possível detectar que em vários momentos ela participou de uma maneira importante nas relações e interesses comerciais de povos e países. Estas pontuações nos conduzem a concluir junto com outros autores, que se a droga encontra–se tão profundamente presente entre os hábitos humanos, é provavelmente em função da maneira que se dá sua utilização, ou quiçá sua utilidade.
Encontramos Hugo Freda e a equipe que compõe o I.R.S. (Institut de Recherches Spécialisées) em Reims fazendo a seguinte formulação: ‘a droga se define por sua função. Com efeito, como não se dar conta que se a droga alcança tanto sucesso é, para dizer trivialmente, que ela é útil?’ [5] É uma observação que nos parece paradoxal, mas talvez ela seja importante, a droga pode ser útil para que?


Algumas contribuições de Freud

Freud nunca se deteve muito longamente sobre o tema das drogas, mas fez algumas observações que podem ser consideradas relevantes. É no texto ‘O mal estar na civilização’ (1929), que ele faz um comentário que provavelmente embasa um raciocínio como este, o de que a droga pode ser útil. As considerações freudianas, embora pontuais, serviram como referência para os seus contemporâneos, bem como ainda hoje contribuem de forma importante para as articulações teóricas acerca dessa questão. Pode-se destacar da leitura freudiana algumas idéias que ficaram mais conhecidas, e neste trabalho vale a pena localizá-las.
Por exemplo, em “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905-1977), quando o autor apresenta a embriaguez etílica como um recurso para driblar a censura. No apontamento freudiano, chiste e embriaguez revelam o fio de um mesmo princípio, no qual a censura pode ser suprimida. Um dos dons do álcool é a mudança que ele provoca no estado de espírito. As forças inibidoras se curvam às disposições eufóricas que são produzidas por vias tóxicas. O chiste permite driblar a censura, e algo análogo ocorrerá na embriaguez, na medida mesmo em que ela se presta à mesma função.
Outra consideração freudiana clássica é a que foi aventada em “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (1912-1970) quando o psicanalista encontra nas palavras do poeta Böcklin, a confissão de que a relação do beberrão com o vinho é tão harmoniosa quanto um “casamento feliz”. Freud, nesse trabalho, dedicava-se à tarefa de comentar sobre os impasses recorrentes da relação amorosa, e encontra esta pista do casamento com o copo como o protótipo do casamento feliz. Mas o casamento com o copo é um casamento que paradoxalmente pretere o outro. A observação freudiana permite trazer à luz quão intricada pode ser a relação de um sujeito com um tóxico. Ela permite ilustrar a peculiar adesividade que se encontra em curso na relação que o toxicômano e o bebedor estabelecem com seu produto. Não apenas isso, ela se presta ainda, a chamar a atenção sobre o tratamento dado à questão do encontro com o Outro sexo pelo alcoolista e o toxicômano.
A droga volta à cena em “O mal estar na civilização” (1930-1974), como um método grosseiro e eficaz que permite tratar o mal estar que é inerente ao processo civilizatório. Através da produção de sensações prazerosas, os tóxicos alteram as condições que dirigem a sensibilidade e, assim, o sujeito se mantém afastado dos estímulos que lhe são desagradáveis. O método permite evitar o sofrimento quando o organismo encontra satisfação nos processos químicos, bem como conduz ainda a um grau de independência do mundo externo. Freud cita Wilhelm Busch para corroborar suas impressões; “Aquele que tem preocupações, tem também aguardente” (FREUD 1930 – 1974. p. 93). Pode-se dizer que a visada freudiana permite pensar o uso do álcool e da droga como um recurso que de algum modo oferece ao sujeito que dele se utiliza uma espécie de tratamento. O psicanalista adverte, contudo, do risco que existe nas soluções que consideram o gozo antes da cautela. Esse refúgio em um mundo próprio tem como conseqüência um afastamento do laço social. Não escapa a Freud que este tipo de solução, leva habitualmente a um grande dispêndio de energia.
A partir destas observações, pode-se reter um direcionamento oferecido por Freud para a questão do uso de produtos inebriantes. No uso do álcool encontra-se uma maneira de escapar das injunções provenientes da censura. A fala do homem embriagado e o dito chistoso funcionam como um recurso capaz de driblar as forças inibidoras. Pode-se perceber neste recorte que o uso do álcool de alguma maneira funciona na economia psíquica do sujeito.
Outro ponto relevante é o que diz respeito ao “casamento feliz” com o copo. A idéia é desenvolvida enquanto o psicanalista considera sobre a vida amorosa, e é neste contexto, diante da constatação dos impasses a que habitualmente a vida amorosa conduz, que Freud pinça esta curiosa observação, de que haveria um casamento feliz. O casamento feliz é, todavia um casamento sem parceiro. Este breve achado é elucidativo, o toxicômano e o alcoolista, casados como estão, com a droga ou com o copo, normalmente pouco disponibilizam de sua libido para outros tipos de investimento. O mal estar sempre presente para os sujeitos falantes diante do encontro com o Outro sexo, parece encontrar um encaminhamento definitivo na solução tóxico-etílica.
E por fim na trajetória freudiana, este ponto que parece muito importante a se considerar, a idéia de uma espécie de tratamento pelo uso dos tóxicos, conforme é pensado em “O mal estar”. A observação de Freud permite, e isto não é pouco, sair do eixo de um raciocínio normativo-moral que localiza a droga como uma forma de desvio moral, frouxidão da vontade, para pensá-la como forma de tratamento que alguns sujeitos tentam diante de seus impasses na cultura. Entende-se dessa forma, que as impressões de Freud, mesmo que circunstanciais, permitem um avanço epistemológico para se apreciar de forma mais lúcida esta zona, ainda tão nebulosa.


[3] Carneiro, H. www.historiadoreletronico.com.br/faces/03120801.htm
[4] Carneiro, op. cit



Guilhobel, 1820. Interior de uma casa de baixo povo

Um comentário:

  1. Anderson,
    É com grande prazer que venho aqui.
    Primeiro porque te considero um mestre importante em meu percurso, e outro porque, eu como pesquisador das toxicomanias, vejo ser crucial esse percurso histórico que você apresenta.
    Grande Abraço,

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