segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Modernidade e sintoma: Toxicomania, aquilo que não se decifra

Modernidade e sintoma: Toxicomania, aquilo que não se decifra
Anderson N. Matos[1]
 (texto apresentado no VIII Fórum Mineiro de Psicanálise)





A psicanálise de orientação lacaniana localiza nas manifestações dos “novos sintomas”, entre outros, a figura do toxicômano. É uma manifestação que é absolutamente sincrônica a sua época, como buscaremos demonstrar adiante.
Para que possamos circunscrever este campo surgem algumas perguntas necessárias, a saber: em que circunstâncias surge a toxicomania? Existe uma especificidade na relação do sujeito moderno no uso que se faz hoje das substâncias estupefacientes?
A toxicomania é um conceito relativamente novo que aparece no contexto da Revolução Industrial. Não é um conceito proveniente da clínica, mas antes, da idéia de saúde pública do fim do século XIX. (RUBIO, 1999)
Para situar as condições que a precederam e determinaram é importante detectar os efeitos produzidos pela ciência na produção e criação de novos produtos. O desenvolvimento da farmacologia na primeira metade do século XIX é um exemplo elucidativo, que se presta de modo particular à ilustração dos efeitos da imissão destes avanços na cultura e nos hábitos dos homens. Com o progresso da Química, que permitiu a extração de alcalóides da papoula e da coca, vem à cena uma proliferação de produtos cada vez mais poderosos, como por exemplo a morfina (1804), a cocaína (1860) e a heroína (1874). Surgem também instrumentos revolucionários para a Medicina, que visam uma otimização de suas aplicações e recursos, é o caso, por exemplo, da seringa hipodérmica (1840), que permite a administração de drogas diretamente na corrente sangüínea. Parece necessário perceber que é de uma maneira absolutamente natural, que esses novos produtos originários do mundo médico são introduzidos na vida social.
O desenvolvimento tecnológico leva a criação de uma enormidade de produtos e sua oferta conduz ao surgimento de demandas nos mercados de consumo. Um grande mercado de drogas, naquele momento ainda insuficientemente conhecido do ponto de vista clínico e evidentemente promissor do ponto de vista econômico, se oferecia ao mundo. A introdução, na Europa, dos excedentes do comercio inglês de ópio ou os esforços de grandes indústrias farmacêuticas, como a Bayer, por exemplo, para comercializar a heroína – “irmã da aspirina” – podem ilustrar este quadro. É por este viés que as descobertas da ciência embaladas pelo discurso capitalista produzem uma enorme expansão de vários produtos estupefacientes. É somente no fim do século XIX que o uso destes produtos começa a ser considerado como um flagelo por uma parte da população (RUBIO, 1999). A Medicina por seu turno passa a se interessar pelas novas síndromes produzidas pela intoxicação e estabelecer os quadros clínicos do alcoolismo, do morfinismo, do cocainismo etc. Naquele momento, já começam a se evidenciar os problemas da intoxicação sobre o corpo e se iniciam os estudos de seus efeitos.
O discurso da ciência busca decodificar os elementos da natureza, busca suturar o real. Dar um bom nome às coisas é seu objetivo. Mas seu progresso transcende o quadro de uma boa denominação e efetivamente cria novos produtos que simplesmente não existiam. Nesse contexto, a droga pode ser pensada como mais um entre tantos outros elementos que a ciência descobriu ou potencializou.
É importante verificar como a incidência desses efeitos da ciência no cotidiano modula a questão da oferta de objetos e a relação dos sujeitos com os mesmos. Entre essa proliferação interminável de produtos que surgem, encontraremos vários que se caracterizam pelo aspecto efêmero de suas finalidades ou utilizações. Contudo, estes objetos surgem vinculados a um forte apelo de consumo oriundo do discurso capitalista, que apregoa a via do consumo como a via ‘princeps de satisfação. Expostos nas prateleiras, vitrines e telas digitais, esses objetos serão chamados gadgets e permitem a utopia do acesso a todos de modo igualitário, quase regulador, na produção de uma espécie de gozo uniformizado. Surgem como necessários e capazes de realizar o impossível. Essas próteses que anulam a relação do homem com a falta e servem na mesma medida como tentativa de tamponar a divisão subjetiva. Estes novos objetos que a ciência liga aos homens passam a existir para que o sujeito possa deles gozar.
Contudo, junto aos arroubos tecnológicos da ciência, com toda a sorte de utilitarismo possível que se encontre nos produtos que ela oferece, surgem formas de utilização que não haviam sido previstas. O programa da ciência não consegue inibir ou calcular o que vem a mais, o que retorna como indecifrável das coordenadas do real, impossíveis de quantificar. O simbólico não recobre todo o real. Alguma coisa retorna, efeitos de um real sem significação. Algo escapa, e podemos aí colher a própria noção de sintoma, que revela um retorno da verdade como falha no saber, conforme pensa Lacan. (LACAN, 1998)
A máxima de Lacan (LACAN, 1998, p 623) ‘com a oferta criei a demanda’, encontra nos produtos e no discurso do capitalismo uma encarnação fiel. A droga na modernidade surge paradoxalmente como um desses objetos que foi, senão necessariamente criado, ao menos virtualmente otimizado por avanços tecnológicos. A droga, hoje, funciona numa espécie de utilitarismo às avessas e mostra a outra face de um objeto mais de gozar criado pela ciência. Como todos os novos objetos inseridos no mundo, vêm embalada pelo discurso capitalista, podendo servir como um novo modo de gozo na sociedade. O uso da droga, contudo, parece vir na contramão dos modos de gozo socialmente sancionados. Na toxicomania, tal uso ocorre como um fenômeno em que encontramos presente o excesso, pertinente ao discurso capitalista mas na forma de uma desmedida que desdenha a normatização imposta pelo laço social.
Miller assinala, com uma observação importante acerca dos paradigmas do gozo, que pode nos auxiliar para pensar sobre a questão do excesso que aqui apontamos:

Acrescento que a oposição do prazer e do gozo é essencial. O princípio do prazer aparece, de algum modo, como uma barreira natural ao gozo e, portanto, a oposição se estabelece entre a homeostase do prazer e os excessos constitutivos do gozo. Trata-se, ao mesmo tempo, da oposição entre o que é da ordem do bem – do lado do prazer – e aquilo que o gozo sempre comporta de mal. (MILLER, 2000, p 92)

O uso que se faz da droga na atualidade poderia ser pensado nessa vertente, como um tratamento, no qual o sujeito se utiliza do Pharmakon. Porém, na toxicomania, assistiremos algo que retorna de modo paradoxal, como um remédio sem boa medida – “um remédio que se torna veneno”. (SANTIAGO, 2001, p 159)
É como um efeito do discurso da ciência, que a Psicanálise de orientação lacaniana vai localizar a toxicomania, tipificando-a inicialmente entre as “novas formas de sintoma”. Nestas encontraremos explicitadas as manifestações que revelam a decadência das referências ligadas ao ideal, os efeitos da vacilação dos semblantes e todo o rechaço do saber tão característico da nossa época. Os trabalhos do GRETA (Groupe du Recherche et Études sur la Toxicomanie et Alcoolisme), no final dos anos de 1980, anunciavam as “novas formas de sintoma”, que tomam corpo no século XXI como “novos sintomas e novas angústias”, enquadramento que revela o empuxo contemporâneo ao gozo. (TARRAB, 2007)
A toxicomania como “método químico de intoxicação, é a prova cabal do efeito do discurso da ciência nos interstícios do saber, que cria um novo produto tanto no mercado de bens, como no mercado de gozo”. (LEMOS, 2004, p 52) A droga, pensada como um dos muitos produtos engendrados pela ciência, é um novo gadget. Assim, em conformidade com o raciocínio freudiano de 1929, a droga continua a funcionar como uma forma de resposta ao sofrimento.
Nos tempos modernos, é o discurso capitalista que organiza um gozo possível para os sujeitos, através de uma injunção ao consumo. É o imperativo da obtenção de objetos, que funciona como maneira de tratar a falta. Por esse viés, a droga encontra assim um lugar específico:

Na esfera das relações interpessoais como na da troca econômica, o ideal consumista se prevalece da crença num objeto de direito sempre disponível, com a condição de poder comprá-lo, num gozo sem interdito. Se observará simplesmente o que no horizonte poderia figurar melhor esse objeto sempre accessível, desse gozo garantido por fatura; é o objeto do toxicômano, as drogas de todas as espécies que nossa época multiplica e diversifica. (CHEMAMA, 1997, p 36)

A toxicomania surge como substituto das formas usuais de manifestação dos sintomas. Sabemos que os sintomas habituais das neuroses, conforme propõe Freud, portam uma dimensão de ciframento e são passíveis de interpretação. Pressupõe uma divisão subjetiva, a ação do recalque e do subseqüente retorno do recalcado. Como diz Miller: “Alguma coisa se cifra e se decifra, sem dúvida, nas formações do inconsciente. Isto é evidente em Freud. Mas também, para Freud, alguma coisa se satisfaz no que se cifra e se decifra”. (MILLER, 2000, p 88)
Maurício Tarrab adverte-nos quanto às características destes “novos sintomas”:
A toxicomania, a bulimia, a anorexia, os ataques do pânico e tudo o mais que colocarmos neste saco estão muito próximos do que Lacan chamava a operação selvagem do sintoma, e vão na contramão da vertente simbólica do sintoma como mensagem. É o sintoma que não pede nada, que é a fixação de gozo. (TARRAB, 2007)
A toxicomania, entre os “novos sintomas”, não se enquadra na vertente clássica do sintoma como metáfora. Sua manifestação aponta, antes, para uma espécie de atuação, na qual o mal-estar não aparece cifrado, mas explicitado como gozo sem medida, desregulado. “O que podemos verificar nessas novas formas de gozar é que as atuações prevalecem sobre o simbólico.” (BENTES, 2006)
Na contemporaneidade, não é apenas a clínica do sintoma passível de interpretação que interpela o analista, como bem salienta Figueiró:

Portadora da pulsão de morte, a clínica do consumo é a clínica do aniquilamento do sujeito em sua repetição, em sua solução ao mal-estar contemporâneo. É por isso que fazemos de seu campo os sintomas da nossa atualidade, que, ao banalizar os ideais e ignorar as particularidades, globaliza-se em seu apetite de consumo frenético, na oferta em escala crescente dos objetos para a satisfação e até mesmo nas extrapolações de um bem-estar. Sem dúvida alguma, a subjetividade de nossa época se encontra de tal modo afetada pelas exigências do mercado, nutrido, ele próprio, pela fabricação ininterrupta de objetos ofertados pela ciência, que ela acaba por ter perdidas as suas referências; ela acaba, enfim, por ser consumida em seu próprio consumo. (FIGUEIRÓ, 2003, p 11)

O toxicômano, nesse contexto, é este sujeito que traz um paradoxo interessante: ele é um consumidor-consumido. Talvez possa se levantar a hipótese de que ele é um efeito colateral da confluência de alguns aspectos relativos à evolução da ciência e o empuxo ao consumo. Esse enlace produziu o que a Psicanálise localiza como o declínio da função paterna, com o subseqüente esgarçamento dos ideais e dos significantes mestres. Na ausência de um Nome-do-Pai regulador, assistimos o ordenamento do mestre capitalista que só manda gozar. A nova ordem é gozar, alguma coisa fora da ordem manda gozar, tal qual o supereu insensato, que é ao mesmo tempo a lei e seu desconhecimento, como Lacan localizou tão bem (LACAN, 1986). Uma lei desregulada vocifera contra os sujeitos através de injunções, e parece saber dizer apenas uma palavra: - goza!




BIBLIOGRAFIA

BENTES, Lenita. De que padece o sujeito. In www.cetta.psc.br/main-noticias2.cfm? Acesso em 21.11.2006 22:15 hs
CHEMAMA, Rolland. “Um sujeito para o objeto”. In GOLDENBERG (Org.). Goza!: capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador: Agalma, 1997. p. 36.
FIGUEIRÓ, Ana. Maria. Costa. Lino. Seminários. Agenda EBP. Minas Gerais: Instituto de Psicanálise e Saúde Mental, agosto, 2003. p. 11.
LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar ed. 1998. p 591-649.
LACAN, Jacques. Do sujeito enfim em questão. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1998, p. 234
LACAN, Jacques. Os escritos técnicos de Freud. O seminário – Livro 1 (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 1986. p 123.
LEMOS, Inês. A toxicomania e o discurso da ciência. Mental: Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC – V. 2, Nº 3, Novembro 2004. Barbacena, MG: UNIPAC. p. 52.
MILLER, Jacques-Allain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana.  Nº 26-27, abril, 2000. São Paulo. Ed. Eólia p. 87-105.
RUBIO, Guillermo. Le toxicomane: un homme de parole – Forum Psychanalytique de Bruxelles – Foruns du champ lacanien, jounée du ll juillet, 1999. Versions du symptôme. In: www.champlacanien.france.net Acesso em 11.07.06, 09:20 hs
SANTIAGO, Jésus. A droga do toxicômano; uma parceria cínica na era da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
TARRAB, Maurício. Produzir novos sintomas. In www.nucleosephora.com/asephallus/numero_02/artigo-05port_edicao 02.htm. Acesso em 10 de fevereiro de 2007.


[1] Diretor do Núcleo de Estudos sobre Álcool e Drogas do Instituto Ajudar, Belo Horizonte, Minas Gerais


2 comentários:

  1. Bom texto Anderson!
    Penso que a toxicomania padeça da falta de ciframento, o que leva ao gozo desregrado do corpo.

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  2. Caro amigo,

    linkei seu blog no meu para divulgar.

    Um abraço e felicidades!!!!

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